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quarta-feira, 24 de agosto de 2022

ROMEIROS DE VOLTA AO ALTAR DO SERTÃO

Na esplanada, em frente à gruta , centenas de romeiros rezam.

           Texto e fotos de Reynivaldo Brito

           Jornal A Tarde 9 de setembro de 1980

Toda pureza e autenticidade da religiosidade popular do Nordeste brasileiro concentra-se durante os meses de agosto e setembro na cidade santuário de Bom Jesus da Lapa, a 900 quilômetros de Salvador. São milhões e milhões de romeiros que tomam de assalto esta pequena cidade às margens do Rio São Francisco para pagar suas promessas e cantar ladainhas e benditos arrastando as vozes em verdadeiros lamentos. Eles chegam de todos os recantos do país: de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiânia e de muitas outras cidades do Bahia ou dos mais distantes estados. Chegam todos os ordeiros, trazendo no peito e em seus corpos sofridos, uma religiosidade tão profunda que em determinados momentos, o turista desavisado fica antevendo uma cena de histeria coletiva. Mas, nada disto acontece porque esses homens que diariamente labutam nas roças, com suas mãos calejadas, deixaram em suas cidades os instrumentos de seu trabalho, e trocaram por terços ( que eles chamam de rosários),imagens de Jesus Cristo e de alguns Santos, para participar da Romaria de Bom Jesus da Lapa.

Alguns pagam as promessas mais penosas, como subir de joelhos à gruta com mais de um quilômetro de extensão, e quando terminam de cumpri-las estão com os joelhos sangrando. Outros vestem-se todo de branco e saem cantando ladainhas em voz alta pelos arredores da gruta onde está instalado o Santuário de Bom Jesus da Lapa. De quando em vez, surgem, numa esplanada que serve de local para a realização das pregações e missas campais, alguns religiosos que orientam e aconselham aos romeiros. Na hora da celebração de uma missa, o silêncio é total, e os romeiros contritos entoam seus cânticos tristes e sofridos.

                                                   MUITO SOL E DEVOÇÃO

Atraídos pela multidão muitos comerciantes vendem de tudo
O sol na cidade de Bom Jesus da Lapa, é insuportável. Em determinadas horas atinge a quase 40 graus, e os romeiros enfrentam este calor todos os dias, às vezes em filas que se arrastam por duas a três horas de relógio para depositar num cofre, o óbulo para o Bom Jesus. Calados e ordeiros, os romeiros contam apenas como proteção chapéus de palha cobertos com um pano branco e enfeitados de muitas fitas nas cor verde e azul. Alguns deles chegam com suas famílias, passando por muitas noites mal dormidas nos caminhões paus-de-arara, e cozinhando ou assando surubins que pescam à beira do rio.

Perguntei a muitos deles o que estavam pedindo ao Bom Jesus, e simplesmente responderam que estavam ali para pagar as graças alcançadas agradecer os milagres que o santo teria feito. “Não vim pedir nada! Vim agradecer a graça alcançada que salvou meu filho”, disse o velho Sabino Santana, de 73 anos de idade, pele enrugada e olhos tristes. Ele veio do Sul da Bahia para agradecer ao Bom Jesus, e no penúltimo dia de sua romaria, já não possuía nem um tostão para custear qualquer despesa. Ia passar mais um dia e meio, sem contar mais dois dias, até alcançar sua casa na cidade de Canavieiras. Para Sabino, que pode ser tomado como um exemplo típico de romeiro que todos os anos acorre para Bom Jesus da Lapa. O sacrifício e o conformismo são elementos inseparáveis da personalidade desta figura, que nós que moramos nas grandes cidades, pensamos que está desaparecendo ou que é coisa de cinema. Mas, como Sabino, são milhares e milhares de rudes e sofridos nordestinos que acreditam em dias melhores, e que o sofrimento que estão passando é “pela vontade de Deus”.

                                                   TOCAR NO ALTAR

A beata vestida de branco, com chapéu típico e sua filhinha.
 Muitos dos romeiros ficam extasiados, quando finalmente conseguem, depois de enfrentar duas ou três horas na fila, penetrar na gruta e tocar nas suas paredes, e principalmente no altar onde está entronizada a imagem de Bom Jesus. Logo depois, eles somem por entre as muitas passagens mal iluminadas e empoeiradas. No interior da gruta o ar é tão raro, que se torna difícil a respiração de qualquer ser humano, sem contar a poeira que ataca as narinas dos romeiros.   

Porém, não existe nada que faça o romeiro mal alimentado e sofrido desistir, porque tudo é feito com tanta fé, que ele esquece a fome, e as dificuldades que encontra pela frente. Tudo é vencido com muita obstinação e força de vontade, e muitas vezes até com alegria, porque cumprem a palavra pagando suas promessas. A palavra ainda vale no Nordeste. homem rude da zona rural não aceita a mentira, e o não cumprimento da palavra dada. Falou está falado, principalmente quando promete pagar uma promessa ao Bom Jesus da Lapa.

                                                          MUITOS LADRÕES

Atraídos pela multidão muitos comerciantes vendem de tudo
Quando subimos o morro onde muitos dos romeiros pagam suas promessas e de lá descortinam
toda a cidade de Bom Jesus da Lapa, encontramos um dos mais famosos poetas populares do Nordeste, Minelvino Francisco da Silva, autor de mais de 400 livros de cordel, e seu irmão não menos famoso, colega de profissão, João Ferreira da Silva. No pico do morro eles cantavam os benditos e as ladainhas, atraindo a atenção de todos, e vendendo seus livretos a Cr$10,00 e Cr$20,00.Ao lado dos romeiros, a cidade de Bom Jesus da Lapa é também cenário da presença de pessoas indesejáveis, principalmente de ladrões que para lá se dirigem para roubar os incautos romeiros. E o poeta Minelvino Francisco da Silva, que se intitula “o trovador apóstolo,” tem um livro chamado “Histórias dos ladrões na Romaria de Bom Jesus da Lapa”, que em certo trecho diz: De um a seis de agosto/ É de fazer compaixão/ De tanto ladrão chegar/ De ônibus, de caminhão/ Nesta cidade da Lapa/ Com sua mal intenção”. Estes versos refletem exatamente o clima de uma festa religiosa, onde os marginais aproveitam da aglomeração para agir, e muitos deles encheram a cadeia municipal, pois foram presos em flagrante pela Polícia.

                                                        A HISTÓRIA

Bom Jesus da Lapa é o protetor das populações humildes do São Francisco, e o centro principal das peregrinações que atrai milhares de romeiros todos os anos. O centro da romaria, é uma gruta de calcário que funciona como um santuário, e tem à sua frente uma esplanada, foi construída pelo governo estadual, que foi batizada de Esplanada ou Praça dos Romeiros, local onde são celebradas as missas. Dentro da gruta existem verdadeiras salas, transformadas em capelas com altares grandes, imagens, além de locais para colocação de ex-votos, e, numa delas, está a imagem do Bom Jesus dos Navegantes, e o túmulo do seu fundador, o eremita português Francisco Mendonça Mar (entre 1600-1722).Existe ainda, a Cova da Serpente, símbolo da maldade, que, segundo os habitantes da cidade, desapareceu depois de ser vencida pela reza do Ofício de Nossa Senhora.

                                                     REDENTORISTAS

Os padres redentoristas são encarregados de cuidar do santuário de Bom Jesus da Lapa. Além de cuidar do santuário, eles estão desenvolvendo um trabalho pastoral com as populações ribeirinhas. Segundo informou o padre Tadeu Pawlik, de nacionalidade polonesa, o povo da região é muito bom, e abandonado. Ele trabalha na Pastoral da Terra, e sempre está em contato com problemas de grilagem de terras, tão comuns naquela região. Cita o padre, que na última enchente, um bairro inteiro ficou debaixo das águas, e foi condenado pelo Ministério do Interior, que vai construir 1600 casas para transferir seus moradores. Porém as casas já estão sendo construídas, e tem apenas 4x2 metros, muito pequenas para abrigar famílias que tem mais de dez membros, muitas vezes. Evidente que as pessoas não querem mudar, porque não terão como acomodar todos os integrantes, e não receberam qualquer indenização. “Vá conversar com as famílias, que você verá que situação terrível”, disse o sacerdote, apontando para um bairro miserável de casas de taipa à beira do rio, quase encoberto por uma poeira insuportável, levantada pelo movimento de alguns tratores que trabalhavam na construção de um dique de proteção da cidade contra as enchentes. 

Grandes filas na entrada da gruta
Ao lado da religiosidade que atrai milhares de romeiros, os moradores de Bom Jesus da Lapa são beneficiados, e ao mesmo tempo prejudicados. Beneficiados porque aumenta consideravelmente o número de visitantes que consomem de tudo, inclusive o movimento de numa feira existente em frente ao santuário, é indescritível. Por outro lado, são prejudicados porque a cidade não tem qualquer infraestrutura para abrigar tanta gente. Basta dizer que não existe qualquer saneamento básico, e os romeiros banham-se no rio, e fazem suas necessidades fisiológicas em qualquer lugar, além de não ter hotéis, pensões ou pousadas em número suficiente. Durante a romaria, encontrei centenas de pessoas dormindo embaixo de caminhões, nas calçadas, dentro de ônibus e de carros particulares, a depender do status econômico de cada romeiro. O prefeito André Noronha, solicitou durante a romaria, tendo inclusive o apoio do bispo da diocese, D. José Grossi, ajuda do governador Antônio Carlos Magalhães, para instalar a rede de esgotos da cidade, aumentar a Praça dos Romeiros, e melhorar as estradas que ligam o município a outras cidades, às quais estão quase intransitáveis.

                                                       DESPEDIDA

Beatos aproveitam para casar .Uma cena comum na romaria
Um dos momentos mais bonitos da romaria de Bom Jesus da Lapa, é a despedida dos romeiros. Este ano, no término da procissão que percorreu as ruas principais da cidade, acompanhada por milhares de romeiros e da imagem do padroeiro. Os romeiros concentram-se em frente ao Santuário para a missa é benção. Logo a seguir, o bispo D. José Grossi falou aos romeiros, condenando o divórcio, classificando como a “lei do demônio”, e também o aborto, que considerou um “assassinato precoce, porque mata o filho no ventre da mãe”. Depois de algumas rezas e cânticos, os romeiros acenam seus chapéus brancos, dando “até logo” Bom Jesus, porque, em meados deste mês, retornarão muitos deles, para a festa de Nossa Senhora da Soledade. O “até logo”, foi incentivado pelo bispo D. José Grossi, o qual foi respondido pelos romeiros contritos, que não paravam de acenar os chapéus. Ao término da cerimônia religiosa, os romeiros começaram a dispersar, e os paus-de-arara, ônibus, e caminhões, deixavam a cidade com os romeiros agradecidos, cantando em voz alta, por terem cumprido suas promessas. Outros retornarão no ano que vem. como o fazem a vários anos no mês de agosto, que é considerado o mês de maior movimento, sendo que o ponto alto das manifestações, acontece nos dias 6 e 7 deste mês, e 15 de setembro. Assim, enquanto não melhora a vida desta gente sofrida e abandonada, não resta outra alternativa a não ser chamar por Bom Jesus.





Um comentário:

BLOG DO REYNIVALDO disse...

Reynivaldo Brito
Quero de público agradecer ao amigo e ex-colega Rubem Coelho pelo seu trabalho de pesquisar nas edições de A Tarde esta reportagem de minha autoria.