Texto de Reynivaldo Brito
Era um mestre no seu ofício de pintor e o maior restaurador da Bahia.
Faleceu anteontem, ( dia 08 de janeiro de 1986) às 21 horas, na Clínica Ckeck-up. O professor João José Rescála foi sepultado às 17 horas, de ontem, no Cemitério Jardim da Saudade, com grande acompanhamento de seus alunos, amigos e parentes. Com o desaparecimento do mestre Rescála a Bahia perde não apenas o mais importante restaurador que, nos últimos anos, contribuiu significativamente para salvar grande parte do seu patrimonio cultural, mas também um artista invulgar e uma das pessoas mais ternas que já passaram pela Escola de Belas Artes. Um homem de espírito desarmado, doce, sempre disposto a transmitir aos novos e velhos companheiros de ofício os mistérios da arte de pintar. É conhecido que normalmente os mestres não ensinam a seus alunos o "pulo do gato", os segredos da profissão, porém isto não acontecia com o mestre Rescála que estava sempre despojado para repassar aos outros aquilo que aprendera no silêncio das sacristias das igrejas ou mesmo nos salões majestosos dos palácios. Paciente, ele trabalhava em silêncio, e na sua humildade nunca soube desfrutar de sua grandiosidade, porque faltou-lhe o que sobra em muitos – a disposição de buscar notoriedade. Conheci de perto o mestre Rescála e posso aqui atestar a sua docilidade, a sua disposição em falar sobre a sua obra, porém, com muita tranquilidade enquanto ia acendendo um cigarro atrás do outro. Era um artesão porque cuidava dos detalhes e dos materiais com a mesma dedicação daqueles artesãos que tanto nos fazem falta. Criterioso, sempre tinha uma palavra de alento para os jovens que se inquietavam com a demora do sucesso. Como um monge ia construindo o seu mundo pictórico. Rescála não pode ser visto apenas como um grande restaurador. Rescála era também e, principalmente, um pintor que soube como ninguém documentar a Bahia antiga com sua gente calma andando por ruas quase desertas. Sua obra é o reflexo da própria tranquilidade do mestre Rescála que orientou gerações e mais gerações.
PROFESSOR EMÉRITO
Lembro-me quando em 1983 Dr. Jorge
Calmon recomendara que queria uma boa cobertura de uma solenidade na Reitoria. Tratava-se da homenagem da
UFBA àquele que dedicou grande parte de sua vida na formação de novos artistas. Assim das mãos do também já falecido, professor Fernando Macedo Costa o mestre João José
Rescála, aos 73 anos de idade, e 31 anos de ensino recebia o título de Professor Emérito. Foi uma sessão concorrida e o auditório da Reitoria estava repleto de ex-alunos, amigos
e parentes. Uma homenagem justa, e contou com a aprovação unânime do Conselho
Universitário, que homologara uma decisão da própria Congregação da Escola de Belas Artes. Coube a professora Ana Maria Leite da Silva, traçar o perfil do homenageado. Ela que recebera tantos ensinamentos do mestre não teve dificuldades de dizer em público que falava com grande emoção e alegria “do homem, do mestre, do restaurador e do grande amigo”. O
mestre
Rescála nasceu em 8 de
janeiro de 1910, no Rio de Janeiro. Descendente de libaneses, enfrentou quando criança, as dificuldades e até discriminações no meio em que vivia, mas nada o afastou da sua inclinação natural de abraçar a arte.Por motivos financeiros não pôde ingressar na Escola Nacional de Belas Artes, porém,
frequentou com assiduidade o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro e, em 1928, já realizava a sua primeira exposição, ocasião em que recebeu a medalha de prata. Daí foi um trilhar de sucesso. Conseguiu por volta de 1928 entrar definitivamente na Escola Nacional de Belas Artes. Em 1931, participou do grupo que criou o Núcleo
Bernadelli, contrário à discriminação e paternalismo que imperava naquela época nos chamados salões oficiais. Fico a lembrar como teria sido a participação do mestre
Rescála, porque o seu temperamento não era próprio ao debate, às disputas. Preferia sempre trabalhar no silêncio do seu atelier e sempre recomendar um acordo, sempre disposto a acalmar os ânimos.
NAMORADO DA BAHIA
Em 1937 com a obra “Retrato de meus pais”, recebeu o maior
prêmio dado aos artistas naquela época. O
prêmio de viagem pelo Brasil, tendo escolhido o Norte e Nordeste. Foi aí que começou sua grande paixão pela
Bahia, tendo mantido
contato com o
diretor da então Escola de Belas Artes, Manuel Inácio de Mendonça Filho, que mais tarde o convidou para
lecionar em Salvador. Portanto, o convite lhe foi feito em 9 de maio de 1952 para ocupar a cadeira de Teoria da Restauração e Conservação da Pintura. Ganhou a
Bahia, porque nos anos que aqui viveu, o mestre
Rescála foi um inimigo do descaso, dos
cupins, das traças, dos insensíveis que estão a postos para destruírem as obras de arte. Como um Don Quixote de espátula e pincéis em punho ele ia calmamente restaurando e descobrindo beleza! Quantas e quantas pinturas estavam escondidas por baixo de grossas camadas de tinta e sujeira. O mestre
Rescála ia removendo-as com carinho, com muito cuidado e competência.Ao lado deste trabalho ele cultivava a cátedra. Depois de concursos bem sucedidos, além de professor, foi
diretor,
vice-
diretor, presidente de bancas examinadoras e chefe de
departamento da Escola de belas Artes. Ainda na sessão solene quando recebeu o título de Professor Emérito da
UFBA, ele disse ser um eterno namorado da
Bahia. Lembrou de Mendonça Filho, que o convidou a viver aqui, ressaltou o desempenho da Escola de Belas Artes ao longo do anos, “dos seus relevantes serviços nos planos artístico e cultural desta terra.”Não esqueceu de seu velho companheiro Alberto Valença “de sensibilidade apurada, um dos maiores pintores
contemporâneos do Brasil”.
NÃO SOU ACADÊMICO
Ele reagia quando alguém o classificava de
acadêmico. Quem conhecia sua
trajetória pictórica e sabia dos seus ideais jamais o classificaria de um
acadêmico, com todo o significado que esta palavra encerra. Ele foi um dos fundadores da Arte Moderna que acima de tudo foi um dos que produziu trabalhos visando à modernização da arte brasileira. Junto com
Edson da Mota,
Djanira, Da Costa, Jordan Oliveira, Miguel Santiago e
Pancetti o mestre
Rescála foi um dos cabeças deste movimento modernista. Talvez por residir na
Bahia, e estar, portanto, fora do grande mercado de arte é que sua grandiosidade ainda não foi espalhada em todo o país. Dizia que era professor por acaso. Modéstia do mestre, porque desde que
freqüentava o Núcleo
Bernadelli que muitos jovens o procuravam para saber como pintar. Disse-me certa vez que no Núcleo
Bernadelli onde conheceu
Pancetti, que era então sargento da Marinha, “nós exercitávamos pintar com modelos ao vivo e fazíamos muitos
croquis para assim podermos dominar o desenho. Não acredito que alguém seja um grande pintor se não sabe desenhar”. Veja que lição para os jovens! Ninguém pode ser um grande pintor sem saber desenhar ! E, quantos andam por aí querendo ser pintor sem saber desenhar coisa alguma. Esta lição do mestre
Rescála deve ser tomada com muita seriedade para que esses possam se dedicar ao desenho como o primeiro passo de uma carreira pictórica.Também ensinava que os jovens não devem limitar-se aos trabalhos da escola. “É preciso treinar, pintar e desenhar sem parar para dominar as formas e cores”. Falando sobre a arte brasileira e sobre um de seus expoentes Cândido
Portinari, disse: “Quando iniciávamos o nosso núcleo recebemos muito apoio de vários
setores renovadores do Rio de Janeiro. O Movimento Modernista ganhava corpo, também em São Paulo. Naquela época
Portinari estava na Europa e quando retornou já havia acontecido a Revolução de 30 – lembrou
Rescála. Os vitoriosos deram-lhe todo o apoio necessário para que prosseguisse o seu trabalho que resultou numa obra monumental”. Como podemos observar, o mestre
Rescála foi testemunho de grande parte da história recente da arte brasileira e um de seus
protagonistas. Sempre esteve longe das trombetas e das noites
grã-finas. Preferia o seu atelier e o convívio da sua família. Disse certa vez, “esta história de que sou
acadêmico é maldade que fazem comigo. Eu já passei por várias fases e hoje faço uma arte que tem uma
personalidade própria. Uma pessoa que entende de arte – argumentava – é capaz de identificar um quadro de minha autoria. Isto é importante para o artista. A
personalidade de sua obra.Mas eu nunca poderia ser uma
acadêmico, pois além de fundados do Núcleo
Bernadelli que incentivou e produziu obras modernistas, também participei do Salão nacional de Arte Moderna que era onde as expressões mais importantes do modernismo brasileiro expunham os seus trabalhos”. O mestre
Rescála deixou
transparecer, numa entrevista publicada em A Tarde em 1976, o seu protesto quanto à procura gratuita do sucesso: “Ganhei vários
prêmios nestes salões e deixei de participar porque estava pornográfico. Estão confundindo arte moderna com pornografia. Uma fotografia de uma
revistinha dinamarquesa funciona muito melhor, se o problema é o erotismo. Acho esta tal de arte erótica uma imoralidade e muitos talentos estão sendo desviados. Aqui na
Bahia temos exemplos que são de conhecimento de todos...
SEU GRANDE IDEAL
Além do ensino e da restauração,
Rescála se deliciava com a pintura. Dizia que era o seu grande ideal. “Jamais deixei e não deixarei de pintar”- sentenciou certa vez, e assim prosseguiu até a hora de sua morte. Mesmo doente continuava pintando. E, é preciso que as gerações futuras vejam em
Rescála , em primeiro lugar, o grande pintor que ele foi e depois o restaurador e o mestre. Sempre que podia chamava a atenção para não confundirem a sua obra como de cunho
acadêmico. “Pinto ou faço uma arte mais
objetiva onde surge com grande força a figuração, mas nunca me chamem de
acadêmico. O que sou na realidade é um pintor de costumes, um realista lírico. O realismo se faz de várias formas e eu tenho a minha própria. Agora, quando faço retratos quero ser
acadêmico, isto não desmerece ninguém. Porque o retrato é a documentação que faço e tem que ser parecido com as pessoas que pinto”. E abria o seu leque mostrando quanto era democrata, quanto de bom ele era e como defendia o direito de cada um ser aquilo que deseja ou fazer aquilo que mais o agrade. “Quanto ao meu conceito de liberdade de expressão é abrangente. O artista pode ser moderno ou
acadêmico ou clássico porque ele escolheu esta opção . É um problema individual, de sentimento. Se não faz o que gosta é um falso. É dentro deste pensamento que realizo o meu trabalho. Meus quadros são concebidos nesta linha de pensamento e
ação.”
O CIDADÃO
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Outra homenagem que lhe prestaram os baianos foi a concessão do Título de Cidadão de Salvador pela Câmara Municipal em 1982. Foi uma
cerimônia informal em sua
residencia que o carioca de nascimento recebeu a homenagem dos baianos que tanto os admiram. Trinta anos de
Bahia, já era tempo de mudar de cidadania. E no dia, com a sua doçura, mostrava-se preocupado em informar ou esclarecer a todos, especialmente aos jornalistas presentes que estava recebendo a homenagem em casa por recomendação médica. A doença já prejudicava suas
ações e seus parentes estavam, de certa forma, preocupados para que ele não se emocionasse com muita intensidade. O velho coração do mestre já estava cansado de tanta emoção, já estava aos poucos diminuindo as suas
atividades.
OS DEPOIMENTOS DE SEUS ALUNOS E AMIGOS:
SANTE SCALDAFERRI :
Rescála era um homem manso. Um excelente professor e a
Bahia deve não apenas na parte cultural do
patrimônio, mas acima de tudo as suas técnicas. Era nosso consultor. Ainda guardo um caderno de suas observações que sempre estou consultando quando tenho dúvidas. E complementa : “A técnica da
encáustica que uso para fazer os meus trabalhos me foi ensinada pelos mestre
Rescála. Seu desaparecimento deixa uma lacuna muito grande na
Bahia cultural”.
CALASANS NETO: Não fui aluno do mestre
Rescála, mas durante o período que utilizava o atelier de gravura da antiga Escola de Belas Artes que funcionava na Rua do Tijolo, a sala de gravura ficava vizinha da sala de restauração onde ele trabalhava. Aí tive a feliz oportunidade de conhecer um dos homens mais competentes dentro do seu ofício, fazendo um trabalho que eu não conhecia, um trabalho que só as pessoas abnegadas e providas de espírito superior conseguiram fazer que é a restauração. Por intermédio desta vizinhança conheci um pintor que
desassociava a sua arte de restaurador a de criador, que era o mestre
Rescála. Convivi alguns anos junto a ele e pude sentir a grandiosidade não apenas do criador, mas do ser humano que ele era. Sempre gentil e nunca escondendo aos alunos os mistérios do seu ofício.
CARYBÉ:
Rescála era uma pessoa que mais mereceu o título de mestre. Foi como pessoa, como artista e como professor um exemplo para as futuras gerações. Começou com
Pancetti na arte moderna, não do ano de 1922, mas no movimento modernista do fazer, do realizar através do seu próprio ofício. Ele foi um dos que deram força ao modernismo, responsáveis por seu prosseguimento no Núcleo
Bernadelli, do qual foi fundador, e de lá saiu para restaurar e salvar o
patrimônio da
Bahia. Era um grande técnico e a ele devemos a
ressurreição do Convento de Santa Teresa, do Solar do
Unhão, de palácios e muitas igrejas. Ele sabia restaurar e pintar como ninguém. Era um homem doce. Sempre pronto para responder com civilidade e carinho a qualquer dúvida. Diversas vezes o procurei para tirar dúvidas e sempre recebia lições. Cada consulta era uma aula de técnica e sabedoria.
MIRABEAU SAMPAIO: O velho
Mirabeau Sampaio ainda não sabia da morte de seus amigo
Rescála. Na qualidade de jornalista lhe telefonei para tomar o seu depoimento, na certeza de que ele já tinha recebido a triste notícia. Porém,
Mirabeau continuava falando como se ele estivesse vivo. Daí perguntei se tinha sabido do ocorrido e
Mirabeau entristeceu. A voz ficou um pouco embargada e disse: “Vejo o mestre
Rescála com muito respeito. Era um grande técnico e mais do que isto um grande artista! Nada de improvisação na sua obra. Tudo era feito com responsabilidade. Sabia como ninguém a arte de pintar. Só se pode fazer elogios ao mestre
Rescála! -desabafou
Mirabeau. "Eu admirava muito ele. Não havia uma pessoa de tão boa vontade e tinha muito que transmitir. Tinha alegria quando a gente telefonava para esclarecer uma dúvida.”.
CARLOS BASTOS:Tinha muita admiração por
Rescála. Lembro que uma empresa o chamou para fazer a restauração dos dois painéis de minha autoria e nunca lhe pagou. Ele recebeu aquela atitude condenável com resignação. Uma vez pintei o seu retrato no painel da
Assembléia Legislativa, mas o fogo devorou tudo. Acho que ele era mais um restaurador que pintor e assim formou uma escola de bons restauradores baianos. Como pessoa humana era sensacional, uma doçura de pessoa.
JACY BRITO ( MARCHAND ): Por várias vezes
Jacy fez exposições com trabalhos de
Rescála. Para ela o mestre deixa uma perda
indiscutível para a
Bahia. Trabalhava na
discreção, no silêncio. Quantas coisas importantes foram salvas por
Rescála! Professor de várias gerações artistas. Não tinha as trombetas do sucesso tocando para ele, embora fosse um dos grandes mestres da pintura da
Bahia. Como professor, o que ensinou a várias gerações vai permanecer para sempre.
ZIVÉ GIUDICE: O professor
Rescála era uma dessas pessoas carismáticas. Detinha a sabedoria do tempo e sempre assediado pelos alunos curiosos, a resgatar-lhes as dúvidas. A sua presença na Escola de Belas Artes da
UFBA. Sempre
tranqüila e disponível, conferia àquela instituição conceitos que só os grandes mestres conseguem.
IVO VELLAME: O professor Ivo Vellame colega do magistério de Rescála também ressaltou as qualidade do mestre dizendo: “Estou muito sentido com o desaparecimento do professor Rescála. Ele era uma dessas figuras raras, que de vez em quando surgem na terra. Além de ser um mestre no seu ofício de pintar era uma criatura humana indescritível. Sempre atento para servir, sempre tinha uma palavra de carinho para com aqueles com quem convivia. A Bahia perdeu um grande mestre da restauração e da pintura. Mas suas obras serão perpetuada porque é grandiosa.