Objetivo


quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

EDUCAÇÃO - A HORA DE ESTUDAR ATRAVÉS DA ARTE

A TARDE – SEXTA-FEIRA, 12 DE AGOSTO DE 1977
Texto: Reynivaldo Brito Fotos: Gildo Lima
“O homem só pode atingir a harmonia do seu ser, portanto a sua felicidade, se não descurarde nenhuma de suas potencialidades.
O predomínio, na escola, do racional, do pensamento abstrato, tende a suprimir o lado afetivo, emocional e instintivo da pessoa humana. E toda a moderna psicanálise está a demostrar a enorme importância do fator afetivo na estruturação de personalidades equilibradas".
                             ONOFRE PENTEADO NETO
A habilidade manual para uma melhor integração -foto

Estamos  assistindo aos poucos uma preocupação dos educadores do país em possibilitar à criança o desenvolvimento de suas potencialidades através de métodos modernos que podem ser resumidos no respeito ao ser humano e à sua capacidade de criação.
Este movimento teve início no Brasil há exatamente 29 anos quando foi criada a Escolinha de Arte do Brasil que proporcionou em julho de 1972 o encontro do Movimento de escolinha de arte – qualquer centro ou instituição que comunga o desenvolvimento o das potencialidades de criação – em busca da liberdade.
Desse encontro surgiram algumas conclusões que vêm sendo postas em prática em quase todos os Estados brasileiros e até em alguns países sul-americanos. Foi criada a Associação Brasileira DE Educação através da Arte, órgão filiado à INSEA-UNESCO, Internacional Society for Education Throug Art, com a finalidade de estimular e valorizar as experiências realizadas pelas escolinhas e grupos de arte, por instituição e pessoas com interesses afins. Cabe ainda a esta associação criar áreas culturais e educacionais visando ampliar a ação deste movimento.
                                                              CONCLUSÕES

Eis aqui algumas das conclusões a que chegaram os organizadores do encontro que são de grande importância. Vajamos: necessidade das escolinhas de arte do Brasil em se constituir num centro revitalizante e gerador das suas idéias de educação através da arte, sendo veiculo dessas idéias os professores que se identifiquem neste processo; necessidade de encontros daquele tipo para se manter a unidade do movimento; necessidade de renovação pela análise e critica constante de experiência que sejam vistas como sínteses criadoras temporárias e suscetíveis de mudança no campo arte-educação; e necessidade da penetração das escolinhas no interior estimulando Centros de Cultura, capazes de favorecer o próprio crescimento da escola e do meio ambiente.
Foram mais ou menos estas conclusões que levaram centenas de pessoas a se preocuparem com o movimento Educação pela arte. Exatamente por crença em todo este ideal que é a Educação através da Arte que um grupo de professores sob a orientação da Secretária de Educação do Município, professores Maria Stela Pita Leite, realizará em Salvador o I Encontro Municipal de Arte e Educação reunindo especialistas de vários Estados brasileiros. Eles debaterão entre os dias 22 e 27 do corrente mês no Retiro de são Francisco as suas experiências com vistas à criação do Núcleo Municipal de Arte e Educação que será a pedra de toque para a adoção de uma política mais abrangente no setor, envolvendo não apenas especialistas, mas também todo o professorado
que deve voltar suas vistas para o desenvolvimento das potencialidades criativas de seus alunos. Será um grande passo para minorar o problema citado pela escola tradicional e coercitiva, onde os valores são impostos de cima para baixo sem a preocupação com a recepção e os resultados desta imposição.
Este núcleo não deve ficar restrito ao pessoal da Secretaria Municipal de Educação e Cultura e muito menos aos participantes e organizadores deste I Encontro de Arte e Educação. Ele deve ser integrado à comunidade baiana para que os adultos e as crianças busquem e encontrem os caminhos que permitam um maior dinamismo deste ideal. O Núcleo pensa na criação, no jovem, no adulto e funcionará no Parque da Cidade, um local privilegiado que se transformará num laboratório natural motivador, na perspectiva de promover o desenvolvimento do ser humano. Na foto acima a criação livre representa arealização da criança.
                                                                             
                                                                              O MOVIMENTO

Explica o professor Onofre Penteado que o conceito de “Educação pela Arte é um movimento cultural que congrega educadores, artistas e professores, secundados por psicólogas, filósofos, sociólogos e críticos de arte tendo por meta integrar o processo criador nas escolas de todos os níveis e tomando como ponto de partida programática a valorização da arte no processo educacional”.
Este movimento nasceu no século XIX quando foram iniciados os trabalhos da psicologia da aprendizagem e a constatação das diferenças individuais do conhecimento das necessidades humanas em termos de estímulos, incentivos e motivações.
Cresceu por sua importância para o desenvolvimento da criança e assim várias disciplinas artísticas foram sendo incorporadas aos currículos escolares em todo o mundo. Os teóricos cuidaram de fundamentá-lo. Os técnicos educacionais em torná-lo realidade, e, hoje, assistindo o crescimento desta escola nova que permite uma maior abertura, flexibilidade, dinâmica e que “representa na sociedade atual em crise, a presença do espírito humanístico que sempre se manifestou ao longo da História”.
Segundo os seguidores do movimento Educação através da Arte são vários seus objetivos: busca a harmonia do homem, o sentimento e a razão, a poesia e a técnica. Procurando desperta a consciência dos valores comunitários, os sentimentos de nacionalidade e de universidade, fins psicológicos e sociais a que visam as praticas criadoras nas escolas. Essas atividades têm por meta a democracia e a paz universal, como diria Herbert Tead (1893-1968), um de seus teóricos.
Diante disto a personalidade do educando deve ser respeitado e repelido qualquer totalitarismo negador da pessoa humana. Isto porque acredita-se que na pessoa humana está a essência das diferenças individuais exigidas por qualquer sociedade aberta.
Os educadores integrados neste movimento aceitam consequentemente os diferentes modelos de expressão e incorporam o pensamento de Edouard Claparède (1873-1940), segundo o qual as sociedades, como os organismos, progridem por diferenciação, pelo processo da divisão do trabalho, e não pela redução de todos os elementos vitais a um tipo único”. Foge, portanto da massificação que a criança sofre diariamente em frente ao vídeo onde são lançados tipos estereotipados que traduzem apenas heróis falsos criados por uma sociedade de consumo. Os educadores estão preocupados em desenvolver o espírito do educando adaptando-o à vida social concebida à maneira democrática, valorizando as aptidões individuais convergindo-as para a felicidade comum.
Estamos assistindo em todo o mundo as manifestações coletivas, inclusive nas bienais e salões de arte contemporâneos. Um trabalho onde são respeitadas as opiniões, onde desaparecem as vedetes e surge o trabalho cooperativo e livre. A arte ganha importância e ocupa desde os primórdios lugar de destaque unto ás ciências como a Matemática e a Física. Não podemos pensar somente no imediatismo do profissional. É preciso cuidar do espírito do profissional e acima de tudo desenvolver suas potencialidades porque assim ele estará mais apto para sua integração social.

                                                               OS EXPOENTES

Diz Onofre Penteado que entre os expoentes do movimento Educação pela Arte podemos destacar Herbert Read, Viktor Lowenfeld, Arno Stern, Pierre Duquet e em nosso País o artista Augusto Rodrigues, fundador da Escolinha de Arte do Brasil, do Rio de Janeiro, que estará presente ao encontro promovido pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura. Muitos são os artistas que comungam esses pensamentos e muitos deles virão à Bahia para trocarem experiências com seus colegas baianos. Será um encontro de relevo para a educação do município e marcará época porque importantes conclusões serão reveladas e utilizadas no desenvolvimento do Núcleo a ser instalado no Parque da Cidade.
É preciso não esquecer que toda a psicologia moderna atenda para a atividade artística da criança como uma expressão que serve a todos os fins habituais da linguagem: abstração, sonho, comunicação com outros.
Nós comunicadores engajados no processo tecnicista da sociedade contemporânea damos uma supervaloração à linguagem verbal e à expressão por meio de símbolos matemáticos, por serem como diz ainda Onofre Penteado – “mais adequados às abstrações, ao pensamento lógico”. Mas é preciso perguntar se este comportamento é apropriado à natureza da criança como ser humano. Certamente que não, porque a linguagem da criança é do sentimento e é através dos rabiscos que fazem nas paredes, no papel e também nas formas desproporcionais que elas criam, que está seu melhor meio de expressão.
Diz Herbert Read que “uma das principais finalidades da educação deveria ser a de conservar nas crianças o dom que têm de nascença: a intensidade física da percepção e da sensação. “Mas, os métodos irreais aplicados nas escolas é mesmo no seio da família resultam no distanciamento deste dom”,

                                                                         NA BAHIA

Em Salvador, o l Encontro Municipal de Arte e Educação será realizado antes do organizado pela Sobreart, no Rio, e contará com a presença de: Augusto Rodrigues, pernambucano fundador da Escolinha de Arte do Brasil; diretor-técnico dessa instituição, fundador da escolinha de Arte de Recife, presidente de Honra da Sobreart, artista plástico, caricaturista e critico de arte. Nasceu em 1931. Noemia de Araújo Varela, Gaúcha, membro do Conselho Mundial da Insea, diretora do Departamento Pedagógico da Escolinha de Arte do Brasil, vice-presidente da Sobreart e mesmo do Comitê Nacional da OMEP. Zoé Noronha Chagas Freitas, carioca, presidente da Sobreart, vice-presidente da Escolinha de Arte do Brasil e organizadora do I Encontro Latino-Americano de Educação através da Arte. Cecília Fernandez Conde, carioca, diretora do Departamento de Cultura do Conservatório Brasileiro de Música, assessora do Departamento de Cultura da SEC, Rio de Janeiro e membro da diretoria da Sobreart; Ilo Krugli, argentino, assistente técnico do Departamento de Cultura da SEC, Rio, professor das atividades teatrais da Escolinha de Arte do Brasil, autor de peças e ganhador do “Moliére” com o espetáculo “Federico Garcia Lorca – Suas pequenas Histórias”; Lúcia Alencastro Valentim, carioca, técnica em assuntos educacionais do MEC, responsável pelo departamento de Educação Artística; Bartolomeu Campos Queiroz, assessor da Sec. Ed. de Minas, filósofo e especialista na área Arte-Educação; Iara Matos Rodrigues, gaúcha, diretora da Escolinha de Arte da UFRGS; e Cascia Frade, mineira, assistente do Dep. de Cultura da Secretaria de Educação do Rio, professor de Educação Musica e pesquisadora do Folclore, com tese defendida. São esses alguns dos convidados com presença assegurada sem falar em estudiosos baianos em várias áreas que também participarão do encontro promovido pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura.

                                                                 TAMBÉM NO RIO

De 18 a 22 de setembro próximo será realizado no Rio de Janeiro o I Encontro Latino-Americano de Educação através da Arte promovido pelo Ministério da Educação e Cultura, Funarte e Instituto Nacional de Artes Plásticas. Este encontro será executado pela Sociedade Brasileira de Educação através da Arte – SOBREART vinculada à INSEA, International Society for Education Through Arte e Escolinha de Arte do Brasil. Os estudos e debates girarão em torno do tema básico: Arte, Educação e Comunidade, através de conferências, painéis, grupos de estudos liderados por educadores e artistas latino-americanos. Será realizado na Universidade do Estado do Rio Janeiro.

CULTURA - UMA NOVA CAROLINA DE JESUS SURGE NOS ALAGADOS

A TARDE – SEXTA-FEIRA, 12 DE AGOSTO DE 1977
Texto Reynivaldo Brito
Fotos: Arlindo Félix e Lula Carvalho




Solange, condenada sem Júri sofre há mais de trinta anos.
As lembranças de um passado triste, incompreendido e marginalizado levaram Solange Ribeiro, uma moradora de Alagados – bairro de palafitas que abriga mais de 100 mil pessoas, - a escrever um livro intitulado “Condenada Sem Júri”, onde relata toda sua dor. Seus contos, poemas e pensamentos ecoam como gritos contra a marginalização a que vem sendo conduzida desde sua infância. Sua aparência é de uma mulher frágil, mas que tem uma grande facilidade de se comunicar com as pessoas e uma vontade ferrenha em vencer.
Assim 17 anos depois que surgiu “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus, a favelada paulista recentemente falecida, eis que outra moradora de uma área-problema resolve transportar para o papel os seus sofrimentos. O seu maior sonho é editar o livro na esperança que todos os problemas que enfrenta sejam solucionados. Com a editoração do livro, Solange Ribeiro espera educar seus setes filhos e “melhorar a situação de minha família”. Ela não sabe que Carolina Maria de Jesus, mesmo depois do sucesso do livro, levou uma vida humilde e de sacrifícios até sua morte.
O livro
– Estávamos exatamente no ano 1940 quando as enchentes ameaçavam transbordar aquele famoso Rio Paraguaçu. Numa cidadezinha do interior, por nome São Felix, nascia mais uma criança do sexo feminino que puseram o nome de Solange. A alegria ao nascer foi nenhuma. Nasci na Segunda Guerra Mundial e vim para uma guerra de conflitos sentimentos que hoje vivemos. Pois foi minha concepção, e fui envolvida numa rede de conflitos que viviam meus pais. Eles que não conheciam a palavra amor. Poderia ter nascido uma heroína, pois São Félix é irmã gêmea de Cachoeira, a Cidade Heróica, que resistiu contra o invasor estrangeiro, Mas, não foi nada disto. Não posso jamais imaginar o que se passava dentro de seus sentimentos. Nunca pensei que por ser filha adulterina o destino me odiasse a passos lentos. ”Naquele tempo não tinha maturidade para julgá-los”. Estas palavras estão contidas no capitulo principal e que dá o nome ao livro da favelada Solange Ribeiro. Ela continua fazendo um relato amargurado de sua infância. Fala de suas decepções e do comportamento sexual irregular de seu pai que tentara até possuí-la.
Estudou o primário em São Félix, uma cidadezinha que dista quase cem quilômetros de Salvador. Aos quatro anos de idade foi morar com a esposa de seu pai de nome Onélia Bastos Ribeiro, que ainda reside na Cidade de Cachoeira. Seu relacionamento com a madrasta continua até hoje e ela a chama de titia. Diz Solange que “titia é uma pessoa maravilhosa”. Mas, com vinte anos de idade Solange não aguentando mais as investidas de seu pai transfere-se para Salvador. Estávamos no ano de 1960 quando conheceu seu primeiro esposo com o qual teve dois filhos. Com cinco anos de casada seu marido suicidou-se, a exemplo de seu irmão de nome Frederico. Segundo ela, as mortes não tiveram qualquer ligação. “Foi pura coincidência. Meu marido tinha problemas de saúde e financeiros. Desde cedo que enfrentamos uma vida dura. Mas o pior foi o seu desaparecimento”.
Depois desde triste acontecimento, Solange continuou seu destino e teve mais dois filhos com um companheiro sobre o qual não gosta de falar, vive com um motorista de táxi, desempregado, chamado Nelson Santos, com o qual já tem dois filhos.
Os Poemas
Além do livro “Condenada sem Júri” Solange Ribeiro escreve poemas que trazem à tona os mesmos problemas relacionados em seus contos. Um deles intitulado: “Aos Heróis dos Alagados”, é este:
“Conheço grandes heróis, / Que são bem pouco lembrados / Sabem eles quem são? / Nossos queridos alagados. / Os anos vão passando / E nós naquela ilusão / Em ver nosso barraco em terra / Diante de nossa visão / As crianças estas coitadas / Não sentem seu grande drama / De crescer e ser gente um dia / Pelo asfalto do lixo / Brinquedos, remédios e comida / Não se fala é puro mito”.
Aí Solange demostra sua amargura em ver seus filhos brincando nas pontes que ligam uma palafita a outra. Constantemente crianças caem dessas pontes e espetam-se, quando não morrem afogados nas águas escurecidas e podres de Alagados.
Outros poemas de Solange fala de sua mãe que desapareceu quando tinha quatro anos de idade. Ela afirma que sua mãe mora no Rio de Janeiro, mas nunca teve notícias como está passando. Este ano escreveu um poema dedicado a sua mãe que diz: “A Mamãe” – “Quando lhe vi um dia / Tinha apenas quatro anos / Pensa que lhe esqueci? / Se pensa é puro engano! / Lembro da despedida / Foi um mês de novembro / Você chorava tanto / Vê como ainda me lembro! / Todos os dias eu fico / Esperando a sua volta / Creio que nesse dia mamãe / De saudades estarei morta!...”
Ela não resiste e apela para que sua mãe apareça pois “era bem importante que reencontrasse minha mãe. Papai já morreu e tenho apenas a minha “titia” que está com a saúde muito abalada”.
“Meu pai morava em Cachoeira e trabalhava como escriturário numa firma de exportação e dominava alguns idiomas. Falava com muita desenvoltura. É tudo que lembro, além das investidas, que muito me marcaram”, adiantou.
O Sonho
O maior sonho, no momento, de Solange Ribeiro é editar o seu livro. Foi com este objetivo que procurou o radialista França Teixeira, que tem um programa esportivo na Rádio Clube da Bahia. Fez uma carta e levou o caderno onde estão contidos seus escritos. Mas infelizmente não teve oportunidades de falar com o radialista. Esteve duas vezes, sem sucesso, na estação. A única pessoa que ouviu a favelada foi uma recepcionista que a recomendou as redações dos jornais locais. Aí continuou sua peregrinação e foram publicadas duas pequenas matérias sobre seu livro. Em seguida uma estação de televisão fez um filmete mostrando o seu barraco e falando sobre seu livro. Diz Solange que “agora estou começando a lidar com pessoas humanas, capazes de compreender o meu sofrimento. Eu já fui procurando por um senhor da Editora Lampião, de São Paulo. Espero, com a confiança em Deus, que meu livro seja editado. Com ele quero mostrar as pessoas os meus sofrimentos. Na esperança que alguém olhe por mim e por milhares de pessoas que moram nestes barracos de Alagados”.
“Editando este livro – continuou – espero modificar toda a minha vida e conseguir a educação de meus sete filhos. Nenhum deles está estudando, por falta de fardamento e livros”. Expliquei a Solange que hoje as crianças poderão ir para a escola que lá elas ganhariam fardas e livros com recursos da caixa escolar. Porém mostrou-se desinteressada, talvez já desesperançada com tanta miséria. Em seguida deixou escapar que “uma moça me deu vários cadernos”. Nesses cadernos que foram dados para as crianças ela esta escrevendo seus contos e poemas.
A miséria
O barraco onde reside Solange Ribeiro, seus setes filhos e o companheiro Nelson Santos não mede mais de três metros quadrados. O piso é de tábuas velhas com grandes buracos por onde passeiam ratos e insetos. Nas paredes de tábuas de caixotes estão escritos vários pensamentos de sua autoria. Eis alguns dos pensamentos: “Antes de condenar-me procure absorver teu próprio eu“. Outro diz o seguinte: “O ignorante é o sábio oculto”. Além destes existem outros pensamentos e alguns em francês, língua que aprendeu quando estudou para submeter-se a um concurso público para o cargo de postalista. Ela foi reprovada devido a seu grau de instrução, primário incompleto.
Atualmente nenhum membro da família de Solange está trabalhando. A comida está sendo enviada pelos vizinhos. A luz e água foram cortadas por falta de pagamento. Segundo revelou “depois que fui divulgada caiu um chuvisco sobre nós. O Nelson (seu companheiro) desempregou-se, cortaram a luz e a água. Mas não há de ser nada porque Deus é mais”. E continua: “Atualmente ninguém está trabalhando. Já trabalhei, mas isto foi antes de casar. O primeiro emprego foi na firma construtora Soares Leone como telefonista de PBX. Em 1962, já casada, trabalhei numa empresa técnica em eletricidade, como telefonista. De lá nunca mais trabalhei fora de casa. Talvez por isto minha situação financeira tenha piorado, porque quando meus companheiros se desempregavam a coisa ficava preta”.
Solange atribui que uma das principais razões do seu estado de miséria é devido à sua condição de filha ilegítima. Em vários trechos do livro fala sobre este problema, vejamos: “resolvi escrever este livro porque é parte de minha vida. Nele eu desabafei e conto minha condição de filha adulterina. A caneta e o caderno foram meus maiores amigos nos instantes mais cruciantes de minha vida. A minha presença quase ninguém percebia. Era feia, magra, sem nenhuma aparência física. Fui gerada não sei por quê. Eles não pensaram que no sexo deve haver reciprocidade de afeição. A responsabilidade de um novo ser a encarnar faz-se necessário á preparação. Sinto que ficaram revoltados com a minha presença no mundo. Não sei se lutaram por minha expulsão quando fui feita. A minha jornada evolutiva foi enfrentada com fortes minuanos, borrascas e insucessos, decepções e tudo que pode ferir um ser humano”.
O livro da favelada baiana é recheado de revelações sobre seu estado de miséria, suas decepções e especialmente sobre a condição de uma pessoa marginalizada pela sociedade competitiva. Ela tem plena consciência de sua pobreza, que poderia livra-se com a publicação do livro que escreveu. Basta dizer que é tão grande seu desejo que já bolou até a possível capa. No esboço que fez, Solange apresenta uma mulher sentada com olhar contemplativo, mãos cruzadas e com um vestido longo. No alto desenho uma balança. Num dos pratos escreveu a palavra paz e noutro Fé. A balança está ligeiramente inclinada para o prato onde está escrito paz. Uma paz que ela busca, através de seus escritos, num desabafo de seu sofrimento diário. A Fé, segundo ela, representa a esperança de que as pessoas tomem conhecimento de sua existência e façam alguma coisa por sua família.


MEIO AMBIENTE - MARISQUEIRAS:NA LAMA DO MANGUE, A RAZÃO DE VIVER

A TARDE – TERÇA-FEIRA, 2 DE JANEIRO DE 1979
Texto Reynivaldo Brito
Quando a maré está na vazante e o mangue a descoberto uma multidão de mulheres e crianças corre com latas vazias e outros vasilhames para enfiarem os braços, pernas e rostos na lama podre de onde retiram pequenos mariscos que lhes garantem a sobrevivência. São centenas de marisqueiras que infestam os mangues em todo litoral baiano, especialmente em Salvador, à cata de pequenos mariscos que são vendidos a preços populares nas feiras livres e mercados da cidade. As roupas coloridas e os corpos seminus formam um quadro curioso, principalmente devido ao movimento contínuo de escavar com as próprias mãos a lama à procura dos papa-fumos e ostras. Logo que as águas começam a subir, o mangue vai ficando encoberto e as marisqueiras voltam alegres para seus barracos de onde sairão novamente no dia seguinte para o trabalho. Se está chovendo nada pode ser feito a não ser rezar para que faça tempo bom e possam voltar à lama em busca do sustento de suas famílias.
Esta atividade antes marginal acaba de ser reconhecida pelo governo através um decreto presidencial que regulamentou a profissão das marisqueiras e hoje elas já podem recolher a Previdência Social para gozarem de seus benefícios. Este decreto é fruto de um trabalho que vinha sendo desenvolvido pelas Voluntárias Sociais da Bahia através de sua presidente, D. Maria Amélia Santos (esposa do atual governador da Bahia, Roberto Santos). Depois do decreto, as marisqueiras de todo o país já têm todos os benefícios da Previdência Social, com direito a seguro de acidente do trabalho rural. Caberá, no entanto à Sudepe disciplinar o exercício das atividades dos novos beneficiários fornecendo-lhes as inscrições e os documentos comprobatórios.

                        NOS ALAGADOS
Na enseada de Itapajipe, em Salvador, está localizado o bairro dos Alagados onde residem sobre palafitas mais de 100 mil pessoas, muitas das quais vivem da cata de mariscos que é uma atividade importante, mas tudo indica que dentro de alguns anos essas pessoas terão que procurar outras atividades porque a enseada está altamente poluída por mercúrio e grande parte do mangue está sendo aterrada devido à implantação de um projeto habitacional. Naquele local predominam as pequenas ostras, papa-fumos, lambretas e rala-cocos. Já em outros mangues e baixios localizados no interior do Estado a poluição é quase inexistente e os aterros ainda não são necessários. Aí as marisqueiras ainda trabalham com certa segurança e tranquilidade.
A vida de uma catadora de mariscos é bem simples. Geralmente se deita por volta das 21 horas e acorda quando o sol começa a despontar no horizonte. Arruma nas latas e outros vasilhames, apenas pedaços de pano velhos para cobrir a cabeça e ruma para a lama. A hora de voltar depende da maré. “Quando a maré começa a subir a gente tem que sair, porque com a água alta ninguém pode trabalhar. Os mariscos ficam enterrados na lama e cobertos pela água e é muito difícil captura-los”, afirma D. Ermenegilda Santana, uma senhora negra de mais de 50 anos, que há 22 anos trabalha de marisqueira em Alagados.
Ainda não foi feito um levantamento completo de todas as marisqueiras da Bahia. No entanto, o delegado regional da Sudepe, Edvaldo Severiano dos Santos, acredita que existem centenas delas e cita que alas trabalham em cerca de 150 mil hectares de mangue. Para ele, este tipo de pesca não tem uma infraestrutura. Mas, está sendo implantado na Bahia um projeto bioestatístico, com vistas a controlar a pesca desenvolvida em toda costa baiana na área compreendida entre o Conde e Nazaré das Farinhas, dentre outros locais. Depois, será estendido até Porto Seguro e finalmente a Mouri, no extremo sul do Estado.
                                                                  DISPUTA
Poluído ou não, o marisco é ainda uma fonte de renda e a alimentação principal de centenas de pessoas. Os preços variam de acordo com a clientela, porém, um quilo gira em torno de Cr$ 50,00 e todos os turistas que visitam Salvador provam da “lambreta” que é uma pequena ostra vendida no Mercado Modelo como tira- gosto das batidas feitas com frutas tropicais. Aos sábados o Mercado fica lotado de gente jovem que toca instrumentos e toma as batidas ao som de berimbaus. Ninguém se lembra da poluição da enseada dos Tainheiros ou Itapajipe que mata milhares de mariscos. Também nos restaurantes dos hotéis de luxo e mesmo os localizados em toda orla marítima os mariscos são consumidos em grande escala. Os pratos são deliciosos, especialmente as moquecas que são feitas à base do azeite de dendê. Muitos acreditam que o fogo utilizado para cozinhá-los é necessário para “matar” a poluição.
Porém ,ao lado dos mariscos catados em Salvador e nos mangues do interior do Estado, já se consomem muitos outros importados de Alagoas e alguns estados vizinhos. Isto porque o marisco está se tornando difícil e a procura tem aumentado consideravelmente, especialmente depois da multiplicação dos restaurantes e da presença de turistas na chamada alta estação.
A verdade é que nas praias de Salvador já não se encontram com facilidade as lagostas, ostras, siris, caranguejos e camarões. Grandes quantidades vêm das ilhas que pontilham a Baía de todos os Santos e a maior parte de Alagoas, isto sem falar dos congelados que são comercializados nos supermercados.
O proprietário do restaurante Bargaço em Salvador, Sr. Leonel Evaristo da Rocha, revelou recentemente que usa duas caminhonetes frigoríficas para comprar mariscos em Maceió. “Há sempre uma indo e outra voltando de lá, de modo que dia sim, dia não, recebo siri mole, ostras gigantes, viúvas, lagostas e pitus”. Evidente que os mariscos menores ainda são encontrados em Salvador e que se é comprado fora sai mais caro devido ao transporte rodoviário que é dispendioso.
                                                                          CAMPANHA

Embora não se tenha ainda o número exato de marisqueiras no Estado, os técnicos ligados ao setor de pesca acreditam que existam mais de 10 mil em condições de serem beneficiadas. Para isto está sendo feito um trabalho de conscientização na Ilha de Itaparica, Conceição e outras localidades através da Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social. É a campanha do registro das marisqueiras que lhes garantirá a aposentadoria e assistência médica do INAMPS além da aposentadoria pelo FUNRURAL.


Para dar um caráter de maior segurança ás marisqueiras a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca – Sudepe, órgão do Ministério da Agricultura, distinguiu a presidente das Voluntárias Sociais, Sra. Maria Amélia Santos, com o titulo de “Primeira Marisqueira do Estado da Bahia”, também pelos esforços que empreendeu e que resultaram na regulamentação da profissão de marisqueiras, oficialmente reconhecida pelo decreto presidencial n. 81563, de 11 de abril de 1978. Agora, elas estão sendo filiadas às colônias de pesca e têm garantidos todos os benefícios previdenciários.