A TARDE – Quinta-feira 28/10/1993
Texto Reynivaldo Brito
Estamos assistindo a uma movimentação, principalmente no setor empresarial, com manifestações em defesa da qualidade dos produtos e serviços oferecidos no País. Só que estão começando pelo fim. Não se pode pensar em qualidade sem uma base de formação profissional que garanta a continuidade deste processo, responsável pelo desenvolvimento dos países que estão na linha de frente da civilização moderna. Aí estão o Japão, os Estados Unidos, a Alemanha e até mesmo alguns chamados de “Tigres Asiáticos”, dentre outros. Estes países investem na formação profissional e acreditam que somente desta maneira é possível garantir a qualidade de seus produtos. Isto é possível graças ao entrosamento entre a escola pública e as empresas. É sobre esta experiência que trata esta reportagem, após uma visita de duas semanas à Alemanha conversando com autoridades, empresários, professores e estudantes. Lá também existem problemas e conflitos porque estamos tratando da formação do profissional, e onde está presente o homem, existem divergências. Porém, a formação “Dual” é à base do sucesso de grandes corporações alemãs.
Na foto à esquerda , mostra que nas escolas profissionais o manejo de máquinas como as furadeiras de grande porte é comum entre os alunos.
Os alemães competem no mercado internacional com produtos de qualidade indiscutível. Os equipamentos ópticos, gráficos, seus automóveis (Mercedes-Benz e BMW), dentre muitos outros produtos são feitos com um esmero que espanta o desavisado. Tudo é feito para durar. Até uma simples carteira ou mesa de escritório é feita para durar muitos anos. A sociedade do descartável que implantaram no Brasil quase não tem espaço, porque os produtos são feitos realmente para durar. São fortes e bem feitos. Esta filosofia inclusive está sendo perseguida pelos japoneses que, após conseguirem miniaturizar quase tudo, agora buscam atingir um alto grau de qualidade e sofisticação.
A maioria dos jovens que termina a escola básica segue para as escolas de formação profissional. Isso é que os alemães chamam de sistema dualista ou dual, que resulta da união da formação prática numa empresa com a formação teórica na escola pública. Assim, a economia privada e o Estado juntos são responsáveis pela formação de milhões de jovens. Esta responsabilidade está faltando em muitos empresários brasileiros, inclusive nos dirigentes das grandes corporações, que podem criar escolas profissionais próprias para preparação de uma mão-de-obra qualificada, além de se beneficiar com a relação que se estabelece entre o aprendiz e a empresa. O trabalhador passa a gosta da empresa, produz mais, conserva melhor o maquinário e outros equipamentos de uso individual ou coletivo dentro da organização.
Na Alemanha, a União é responsável pelas normas de formação, enquanto que as escolas profissionais estão sujeitas a cada estado federal. Existem quase 400 profissões reconhecidas, mas a preferência dos Jovens recai sobre uma dezena delas, principalmente de mecânico de automóveis, instalador elétrico, comerciante, pintor e marceneiro. As mulheres preferem profissões como cabelereira, vendedora, comerciária e de assistente médica e dentária.
Estive visitando várias escolas profissionais em companhia de mais quatro jornalistas latino-americanos: Maria Guadalupe, da Bolívia; Alberto Borges, do Equador; Rosalina Orocú Mojica, do Panamá, e Carlos Juanes,de El Salvador, quando constatamos a seriedade com que o ensino é ministrado, além da disciplina quase monástica.
ALTERNÂNCIA
A formação do jovem alemão acontece diferentimente do que estamos acostumados a ver aqui no Brasil. Lá o aluno ao lado da formação na empresa, onde inclusive ganha uma bolsa que varia de 300 a 600 marcos no primeiro ano, indo até 800 marcos no último ano, o jovem frequenta a escola profissional de um a dois dias por semana, durante três anos. Nas aulas, além das matérias de formação geral o aluno recebe conhecimentos teóricos específicos. Esta escola é ainda obrigatória para todos os jovens menores de 18 que não frequentam uma outra escola. Porém, verifique que em algumas escolas ao invés de alternar os dias da semana na empresa e na escola eles preferem alternar semanas, isto é, passam uma ou duas semanas na empresa e uma semana na escola.
Numa indústria de máquinas de fazer cigarros, que é mantida por uma fundação milionária, visitamos a escola da empresa onde estudam 127 alunos e são empregados cerca de 7,5 milhões de marcos por ano na formação profissional, inclusive com a presença de alguns estrangeiros especialmente dos países da ex-Iugoslávia. Lá, verificamos que a formação tem uma disciplina que é essencial para a formação do homem. Não são ensinados apenas aspectos técnicos de como fazer uma peça de metal, mexer no computador ou fazer um desenho. É preciso tratar bem os equipamentos, limpar a área do seu aprendizado, cumprir rigorosamente os horários e estudar as lições passadas pelos mestres. O mestre tem uma ascendência muito grande sobre seus alunos que o respeitam muito e o tratam com referência. Esta disciplina foi uma das coisas que mais chamou a atenção do grupo de jornalistas latinos acostumados com a bagunça que reina em muitas escolas deste hemisfério.
Com isso não quero dizer que lá não existem problemas. Existem sim, e muitos. Tivemos oportunidades de ver na estação de trem de Hamburgo vários jovens drogados que ficam reunidos o dia inteiro naquele local bebendo e acertando seus encontros marginais. A Polícia assiste a tudo de longe só interfere quando acontece um problema maior. Esta área inclusive é considerada perigosa, e os turistas são avisados para não andarem sós por aquelas bandas em determinados horários.
OUTRAS MANEIRAS
Também é verdade que ao lado do aprendizado na empresa e na escola profissional existem outras maneiras de formação profissional, escolhidas por um número cada vez maior de jovens. Um delas é a escola profissional especializada em tempo integral, que dura um ano, e a outra é a escola superior especializada, que acolhe os alunos com o certificado de conclusão da escola real, que, após dois anos de estudos, estão de posse do certificado de madureza da escola média-superior especializada. O aprendizado em oficinas próprias, estágios de aulas práticas e teoria integram seu currículo.
Na foto estrangeiros são treinados e o estudo do alemão é obrigatório para início da formação
É certo que varia de dois a três anos o aprendizado nas escolas como as que mantêm a Siemens e a Mercedes-Benz, a depender da profissão que o aluno escolhe. Ele recebe uma remuneração que só tem aumento anual. É bom sempre lembrar que a inflação por lá é baixa. A Alemanha tem um alto padrão de vida, porém o custo dos produtos está alto em toda a Europa.
Esses alunos são regidos por normas educacionais baixadas pelos ministros federais, tendo como base sugestões dos conselhos que são formados por federações industriais, organizações estatais e sindicatos. Essas normas determinam o conteúdo dos currículos, mas todos são obrigados a prestar exames nas Câmeras de Indústrias, do Comércio, do Artesanato e da Agricultura e órgãos semelhantes. Estas câmaras compõem suas bancas examinadoras com representantes dos trabalhadores e professores da escola profissional.
São mais de 500 mil empresas de todos os ramos da atividade econômica que têm seus aprendizes que são submetidos, ao término de dois a três anos, aos exames das câmaras. Ai, os alemães garantem a qualidade e só realmente encontram emprego seguro aqueles que são aprovados. Os exames são rigorosos e os aprendizes tem que estudar bastante.
É difícil alguém começar a sua vida profissional na República Federal da Alemanha sem ter tido uma formação, o que comprova o sucesso e a efetividade do sistema dualista de formação profissional. A fiscalização é severa e feita pelas câmeras que não permitem enfraquecer a sua atuação e também provocar ao longo dos anos a perda da qualidade dos produtos a da mão-de-obra nos serviços oferecidos no país. Ao lado da formação profissional, também as universidades alemãs têm papel destacado na formação do jovem. A mais antiga delas é a Heidelberg, fundada em 1386. São mais de vinte universidades estatais e particulares. Na universidade rege a autogestão presidida por um reitor ou por um presidente, que é eleito para vários anos. Lá, o estudo nas universidades é concluído com o diploma, com o mestrado ou com a licenciatura, a seguir a possibilidade de obter-se uma maior qualificação através de doutorado. Também é feita uma seleção através de teste e entrevistas, principalmente para os cursos mais solicitados.
Já a formação de adultos atinge hoje mais de 10 milhões de cidadãos que buscam atualização do conhecimento numa sociedade industrial que se renova rapidamente, onde centenas são obrigados a mudar de profissão para garantir sua sobrevivência porque muitas ocupações vão aos poucos desaparecendo e dando lugar a novas. Aí comparecem muitos estrangeiros que se preparam para enfrentar uma nova vida.
LADO COMUNISTA
Também no leste, os alemães participavam da formação profissional, só que lá os jovens eram encaminhados obrigatoriamente para esta ou aquela profissão, levando-se em conta as vagas e a necessidade de formação, ou seja, estavam precisando de 10 mecânicos qualificados, então eram encaminhados 10 jovens, e assim por diante. Tinha um total de 55 escolas profissionais, todas estatais, as quais estão sendo paulatinamente adaptadas à nova realidade, inclusive com os currículos da ex-Alemanha Ocidental.
O certo é que a desvantagem da formação comunista tinha também um lado positivo: é que sua sobrevivência, bem ou mal, estava garantida. Ou seja, ao término do curso, você tinha um lugar assegurado. Agora, a liberdade de escolher o que se deseja, também não assegura um lugar de trabalho. É preciso competir e atingir uma boa formação para disputar o mercado de trabalho. Os próprios professores reconhecem que mesmo após a união das Alemanhas poucos jovens conseguem realmente trabalhar no que gostariam. Tudo é regido pela lei do mercado, portanto, tem que ser levado em conta qual a profissão que lhe garante uma sobrevivência com mais ou menos segurança. No lado comunista, muitas empresas estão sendo fechadas e centenas quebraram porque não acharam quem quisesse comprá-las. Um exemplo: ficamos hospedados num hotel localizado ao lado da estação de trens na cidade de Schwerin, o qual foi colocado a venda e ninguém se interessou. O hotel é antigo, com banheiros tão pequenos que mal dá pra você levantar o braço. O hotel é o melhor da cidade, está ameaçado de fechar deixando antigos funcionários do Leste desempregados.
Aliás, um fenômeno que está nos olhos do visitante é a frustração, após a euforia dos abraços e as festas que era oferecida pelos alemães ocidentais aos seus “irmãos” do Leste. Agora eles têm liberdade, porém, os produtos de consumo não estão – aliás como acontece com qualquer país capitalista, e a Alemanha não está insenta, porque não é nenhuma ilha de fantasia – à disposição dos que têm dinheiro. E, nem todos podem comprá-los. Você admira um BMW, uma Mercedes e roupas caras numa vitrine de um magazine de luxo, sabe que isso existe, mas não está ao seu alcance. A sedução do consumo é muito grande, frustra e vai fundo naqueles que estão sem condições de adquiri-los. O desemprego também é grande e muitos terão que ser reeducados. Para se ter uma ideia, a maneira de servir num restaurante ocidental é bem diferente da do Leste. Lá as pessoas não foram preparadas para atender bem ao cliente, conquista-lo e saber que ele é a alma do seu negócio. Estavam acostumados a servir por obrigação aos camaradas e quase sempre estavam com a cara fechada e muitos ainda continuam assim. Este pequeno detalhe é fruto de minha observação, não pode ser tomado como uma regra geral, mas, certamente existe e tenderá a desaparecer com o passar do tempo, pela exigência do próprio mercado.
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