Objetivo


terça-feira, 12 de janeiro de 2021

MARTIN, O VENDEDOR DE QUEBRA-QUEIXO

São lembranças de um tempo
de amizades verdadeiras
.
O tabuleiro era reluzente, extremamente limpo e a faca, com o cabo de madeira, brilhava de longe sob o sol escaldante de mais de 30 graus. Percorria toda a Cidade com suas ruas dominadas por um areal que queimava os pés quando a gente andava de alpercatas ou sandálias de couro cru. Ainda não existiam as populares sandálias japonesas, que depois se tornaram as havaianas, devido a um fabricante que dominou o mercado. 

A cada 10 ou 15 passos ele gritava mercando seu quebra-queixo de cor amarelada deixando aparecer pedacinhos de coco. Uma delícia que até hoje lembro do seu sabor inconfundível. Todos os dias invariavelmente ele saía às ruas e tinha  muitos clientes que se deliciavam com aquela iguaria doce que esticava e grudava nos dentes. 

Ele mesmo fabricava seu quebra-queixo e não contava a ninguém a sua receita. Era guardada a sete chaves desde que herdou  o saber de seu pai. Era um senhor bem moreno , que antes a gente podia  chamar de mulato, mas que a imbecilidade do policamente correto, imposto nos dias de hoje , quer proibir. Tinha  cerca de um 1,65  de estatura e braços firmes, e quando não estava trabalhando usava um chapéu de feltro Prada.

Cortava o quebra-queixo em fatias generosas e servia parcialmente embrulhadas em papéis coloridos que comprava em fardos na loja do senhor Fernando , localizada  na Praça Getúlio Vargas. Os papéis eram previamente cortados em pedaços retangulares e ficavam enfiados num arame preso ao cavalete de madeira que carregava no ombro , enquanto o tabuleiro vinha na cabeça.

Ele tinha uma agilidade especial em abrir e fechar o cavalete para imediatamente descobrir o tabuleiro e começar a cortar a fatia desejada pelo cliente. Portanto, era um serviço trabalhoso e cansativo  , mas que  fazia sempre com um sorriso no rosto a gritar mercando sua especiaria.

Não existiam muitas opções de lazer em Ribeira do Pombal   a não ser uma pelada num campo de futebol da Rua da Ribeira ou  atrás do Quartel . Ele não tinha mais idade para bater bola com a molecada, portanto , quase ficava sem opção. Até o dia em que chegavam as chuvas de inverno ou as trovoadas nos meses de outubro a dezembro. Aí as lagoas e tanques enchiam , até mesmo alguns riachos temporários se formavam. Com as enchentes logo apareciam alguns peixes ainda em tamanhos reduzidos. Como em Ribeira do Pombal não tem rio ou mar  não havia qualquer controle. Mesmo porque o  defeso na época do crescimento ou na desova dos peixes é coisa nova em nosso país. 

Assim, o Martin do quebra-queixo sempre pegava sua vara de pescar, feita  de unha-de-gato ou de outra árvore  do sertão, e ia lá dar um banho nas minhocas ou nas piabinhas, que antes pegava no Zimpreste, hoje, transformado pela Prefeitura num esgoto a céu aberto.  O Zimpreste era o único riacho permanente que existia , logo na entrada da Cidade, e foi totalmente aniquilado por administrações municipais insensíveis e despreocupadas com o meio ambiente. 

O Zé de Ana ,  de chapéu, e ao lado alguns
amigos e clientes. Foto de Hamilton Rodrigues
.
 A pescaria só acontecia depois de seu expediente   pelas ruas da Cidade. Geralmente ia solitariamente   antes  que o senhor Tidinho ( Agenor Soares Silva)   apagasse as luzes   por volta das 22 horas.

 As noites no sertão costumam ser agradáveis e até   esfriam em determinadas ocasiões. A lagoa do   Caboré estava cheia,e também as  do lado do   Sítio, nas   margens da Br -110. Lá se foi o Martin   todo   esperançoso de uma boa pescaria . Com   certeza   imaginava pegar umas traíras ,   corrós,   jundiaís e caboges, estes conhecidos em outras regiões por tamoatá ou caborja. Por volta das duas horas da   madrugada já tinha conseguido fisgar alguns peixes quando ouviu uma voz que não conseguia identificar de onde vinha  naquela escuridão. A voz estranha gritava: "Martin quer enricar?" Ele parava de pescar e ouvia atentamente tentando localizar e identificar de quem era e de onde vinha. Nada! Depois de ouvir a pergunta várias vezes ficou assustado e resolveu arrumar seus apetrechos de pesca  e voltar para casa . Lá chegando foi logo contando a mulher o acontecido. A companheira  de pronto  o chamou de besta por não ter respondido imediatamente .

 Ela já sonhava com uma casa bonita, um carro , os meninos numa escola particular , enfim, com sua vida arrumada. Combinaram e resolveram ir juntos para a pescaria. Quase no mesmo horário do dia anterior a voz surgiu ecoando forte no meio daquela escuridão. "Martin quer enricar? ". A mulher sacudiu o seu braço, e a vara escapuliu , quase perde. Diga, diga que quer Martin, insistia a esposa.  Martin encheu o peito e gritou a todos pulmões. Queeero... Queeero ! ". A voz cavernosa silenciou, e uns segundos  depois respondeu: "Dê o rabo !". 

Foi um constrangimento e uma decepção indescritíveis. Martin pegou a peixeira, aquela mesma reluzente que ele cortava o seu quebra-queixo e saiu de um lado para o outro tentando localizar o moleque que fez aquela brincadeira de mal gosto em frente a sua esposa. Não conseguiu localizar ninguém. Jogou o bocapiu de palha  no ombro e voltou para casa decepcionado. Não conseguiu dormir e quase não ia trabalhar.

Existia uma barbearia ao lado da casa do líder político , que fora várias vezes prefeito,  José Domingues Brito e Silva, conhecido por  Ferreira Brito, que dominou a política pombalense durante décadas . Quem comandava a barbearia era o Tonho Motor (Antônio Florêncio Rocha) ,tocava trombone na orquestra ,além de ser marceneiro, e com ele trabalhava  Zequinha Barbeiro (José Ribeiro dos Santos) . Era um negro  muito brincalhão e contador de causos. Ele sempre tinha histórias novas para contar. Este assunto chegou na manhã do dia seguinte e deram muitas gargalhadas. 

 Quando a gente chegava de férias de Salvador onde estudávamos no Liceu Salesiano,  Maristas  ou  Colégio Antônio Vieira e precisávamos cortar o cabelo , lá estavam os dois . Zequinha com seu riso mostrando a dentadura branca e uma falha de ouro num dente  , e o senhor Antônio  , mais conhecido por Tonho Motor.

Neste dia fui cortar meu cabelo e a conversa era sobre a riqueza frustrada de Martin do quebra-queixo. Riam de se embolar, como se diz por lá. Quando o Martin surgiu na praça Getúlio Vargas por volta das 14 horas  com o seu tabuleiro reluzente ouviu alguém gritar da esquina : "Martin quer enricar?" E, na outra esquina  responderam : "Dê o rabo!" Ah! Martin sacou da peixeira e correu em direção às esquinas. Lá chegando não via ninguém. Isto se repetiu várias vezes e dias seguidos.

Como era novidade a notícia se espalhou entre os frequentadores do bar de Antônio Pelanca  ( Antônio Galdino Borges) , que ficava na praça ao lado da casa de d. Maria Freire , onde hoje está o Banco do Brasil. Também, o pessoal do Bar Quitandinha, que foi fundado por tio Joãzito,  depois passou por vários donos, e está agora  está dando lugar a  uma sapataria, e em outros botecos e lojinhas da Cidade .

Pedi ao amigo Hamilton Rodrigues que procurasse saber de alguém que lembrasse deste fato. Na conversa que  manteve com o Zé da Ana, (José Rodrigues) , do Bar do Chapa, foi  confirmado . Só que  segundo Zé de Ana  os moleques gritavam "Martin quer enricar?", e o outros respondiam "Vá trabalhar!". Mas, tenho a lembrança que a resposta era mais forte, e foi isto que entristeceu o vendedor de quebra-queixo. Martin perdeu a vontade de sair mercando seu produto. Vieram as primeiras dificuldades financeiras . Meses  depois Martin decidiu de vez abandonar Ribeira de Pombal. Soube que se estabeleceu na cidade de Vitória da Conquista. Ninguém alí sabia de sua pescaria , do builling que sofreu, e nunca mais soubemos  dele.

23 comentários:

Unknown disse...

É muito interessante essas histórias do passado, pois conta não somente do vendedor de quebra queixo do sr. Martin, mas também de como era a nossa cidade sem infraestrutura... Hoje nossa Cidade Ribeira do Pombal, tem cara de Capital. Gostei dessa história do passado,e o sr. Martin que foi um comerciante,que proporcionou de suas iguarias aos pombalenses,hoje faz parte da história de nossa Cidade Ribeira do Pombal.

BLOG DO REYNIVALDO disse...

Jorge Nascimento Silva Nascimento
Que bela estória prof. Reynivaldo Brito ...bonito...bonito... É isso que estamos precisando! Contos simples, belos, relembrando o passado. Conheci TB aqui em Salvador, um vendedor de quebra- queixo chamado Sergipe. Sim, era de lá da terra do Papagaio Dourado! Comprava e dava TB, pra minha mãe e irmãs e vizinhas. Certo dia Sergipe apareceu com uma moçoila bonita, disse ser sua noiva, trouxera de Sergipe. Fui pra fora da Ba, longos 12 anos, e em 2002, em uma diligência nós Pernambués, o reencontrei, uma loja formosa com vários tipos de doces, requeijão, beiju, tapiocas, etc. Me reconheceu, nos emocionamos com as estórias...casou-se, comprou terreno, fez casa, filha se preparando para Vestibular, decência!! Tudo iniciado no quebra- queixo. Correram lágrimas, enquanto comprei seus produtos e relatei a estória a clgs!!! Povo trabalhador, o Sergipano, o Sertanejo!!!!!
· Responder · 17 min



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Antonio Carlos Da Rosa
Muito bom!!!

BLOG DO REYNIVALDO disse...

Eduardo Frederico
Dei boas risadas com a pergunta e a pegadinha do "fantasma". Outra coisa muito saudosa que eu vi foram as palavras alpercatas e sandália japonesa. Lembrei de meus avós. Rey, escreva um livro de contos.

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Maurício Calabrich
Era muito Bom!! ! Olha o quebra queixo. Sai na rua, para comprar quando escutava.

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Nadia Amaral
Muito linda essa sua história. Já comi muito Quebra Queixo. Delicioso.

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Márcia Cristina Silva Barros
Saudosamjavascript:void(0)ente divertido! Adorei, professor!

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Marluce Maria Morais Brito
Como não lembrar de seu Martins! Delícia, aqueles pedaços cortados sempre em diagonal, uma talagada, como era chamado aquele pedaço que cada um saía se deliciando .

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Tania Oliveira Souza
Amo quebra queixo

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Bia Jacobina
Legal primo,amo todas suas matérias,vc é o máximo,bjs

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Maria Antonia Morais Matos
Amando revivendo os contos da noss cidade. Faça um livro .

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Osvaldo Ribeiro Jacobina
Querido primo
parabéns por sua narrativa.
Falar em quebra-queixo lembro
me q no final da década de 40 e início de 50 minha mãe fazia essa cocada e tinha um empregado encarregado de vender o produto e era apelidado de Bodó. Saiu de nossa casa, encerrando a fa-
bricação do que-quê.
Algum tempo depois o Bodó não aceitava o carinhoso e se transformou num comerciante de posses.

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Edna Silva
Excelente representatividade.

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Suzete Baptista
PALMAS

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Sonia Maria
Palmas

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Alexandre Jacobina
Parabéns Rey, aorei o conto.
Essas histórias me fascinam.

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Jane Martins
Interessante a história .

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Inah Campos
Toda Cidade interiorana tem essas figuras pitorescas que viram folclore. Sem malícia a molecada se divertia e a vida seguia rotineiramente. Bom lembrar essas coisas na roda de amigos.Bons tempos... Seus conterrâneos devem te aplaudir por isso.

Martha Costa disse...

Maravilhosa história primo👏🏻👏🏻👏🏻 Foi revivida por minha mãe e rimos juntas.

Ari Donato disse...

Gostei da história, professor. Eu me lembrei de casos assim, lá em Guanambi, na minha infância. Vi que assinou a ilustração. Que bom! Abraços Rey.

Unknown disse...

Que maravilha! Gosto desses "causos" referente a nossa terrinha. Deverias escrever um livro. Contudo, não me recordo do personagem principal. Me recordo bem do Sr. Adão. Pai do saudoso Barra. Sempre com uma alegria contagiante, vendia a referente iguaria. Hoje tem um senhor que vende, mas não sei seu nome.(vou procurar saber), Só sei que ele é atencioso e generoso. Minha irmã conta que um dia ele passou, e o netinho dela com quatro anos de idade, da grade da varanda pediu um pedaço do quebra-queixo. Ele cortou e entregou ao menino, que no mesmo instante disse que não moeda. Ele sorriu, e deu às costas. Depois desse dia, sempre que ele passava por lá, cortava um pedaço do doce e dava pra ele. Rs. Um dia aproveitei, provei e aprovei. RS. Muito bom! Em Salvador tem um tão bom quanto. Fica logo no começo da Rua Chile. Próximo do antigo prédio da Jornal A Tarde, onde hoje é um hotel. Enfim. Gostei da tão bem contada histórias de pessoas que de alguma fizeram parte de nossa querida Ribeira do Pombal. Didil Costa

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Ari Donato
Gostei. Abraços professor Reynivaldo Brito.

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Jose Jesus Barreto
massa!