Objetivo


segunda-feira, 9 de agosto de 2010

RELIGIÃO - O CULTO DA MORTE EM AMOREIRAS



Publicado no jornal A Tarde em 27 de janeiro de 1990.
Texto : Reynivaldo Brito
Foto: Louriel Barbosa


Uma pequena comunidade habita a localidade de Amoreiras, na ilha de Itaparica, na Bahia, e vive quase isolada da civilização zelando pelos espíritos dos velhos integrantes dos candomblés. É uma comunidade fechada, cujos membros evitam contato com estranhos e às vezes chegam a agredi-los quando são importunados com insistência.A maioria é de negros e há anos zelam pelos Eguns que são os receptáculos existenciais dos mortos, cujas identidades são conhecidas.
Atualmente a comunidade tem cerca de 300 pessoas e seu chefe é Manoel Antonio de Paula, um senhor de 108 anos de idade que ouve muito e fala muito pouco. É o mais velho do grupo e ostenta o título de Alagba e seu principal assistente chama-se Otun-Alagba , que é o seu sucessor em caso de morte. Portanto, mesmo em vida o Alagba já tem o seu substituto o que garante a continuidade da seita com todo o ordenamento que eles vêm conservando há centenas de anos.
Todos os membros da comunidade têm orgulho em pertence-la, mas esquivam-se a fornecer qualquer informação sobre os trabalhos ali realizados e o próprio viver do grupo. Basta dizer que ninguém consegue fotografá-los e para que as fotos que ilustram esta reportagem fossem feitas foi preciso um trabalho cuidadoso e persistente junto aos Ojês
Através de um profissional capacitado o fotógrafo Louriel Barbosa, filho de uma das mais tradicionais e respeitadas ialorixás da Bahia, Olga de Alaketo. Assim pela primeira vez são publicadas com exclusividade as fotos dos Babás que são os espíritos dos mortos sendo conduzidos pelos Ojés que os orientam e os repelem com pequenos bastões que trazem presos às mãos. O espetáculo é lúgubre pois, os Babás com suas vozes além-túmulos deixam os estranhos amedrontados.
Os pesquisadores revelam também que a sobrevivência desta comunidade está ligada a uma prática dos descendentes iorubas. Como a maioria das mulheres preocupa-se em dar luz a seus filhos e as condições das populações negras do Brasil tornam a gravidez quase sempre uma aventura que mistura alegria e sofrimento, com perigo iminente de perda da criança, muitas vezes elas procuram a proteção dos Ojês. A primeira resposta é a mulher prometer colocar a criança, se esta for sadia, ao serviço dos Eguns. Se a criança que nascer, graças aos Eguns, for um menino, recebe o nome de Muisan e terá desde a infância uma função específica na sociabilidade dos Eguns. Caso seja menina, recebe o nome de Ato.

FEMININOS DE FORA

Uma curiosidade desta seita é que os Eguns femininos, que devem existir, não se manifestam jamais. Não há almas femininas manifestadas nos Eguns de Amoreiras.
Quando assistimos o culto dos Eguns indagamos quem vestia os trajes de Egun e quem emprestava ao morto àquelas vozes além-túmulos? Eles respondem simplesmente que eram os Babás, E mais nada adiantaram.Porém, segundo pessoas ligadas à seita só podem vesti-los os homens que disponham de extenso saber fanático, ou seja , o que é transmitido de geração à geração no que diz respeito aos amuletos, feitiços, os trajes, os bastões da morte, etc. O detentor deste conjunto de objetos e sabedorias , em sua totalidade, compõe o Egun, que é o herdeiro , o proprietário do Kraal. Conhece os segredos da cura dos Eguns, as suas vontades e sabe interpretar sua dança.
Quase ninguém conhece os Eguns. O segredo é absoluto quando surge em aparições públicas. Só os iniciados e membros da seita têm condições de conhecer um.



A LENDA DOS EGUNS

Segundo contam os antigos iorubas , a morte e sua comitiva costumavam invadir a Cidade de Ifé. De quatro em quatro dias, desciam do céu e invadiam o Mercado de Ojaifé e matavam quantas pessoas podiam com grandes cajados. A maioria dos habitantes de Ifé foi em pouco tempo massacrada. Os sobreviventes voltaram-se então para os Orixás, mas eles responderam que nada podiam fazer contra a morte. Finalmente , um cidadão chamado Ameiyegun prometeu salva-los . Arranjou tecidos coloridos mandando confeccionar uma roupa com grandes mangas com que cobriam os braços e as mãos , também as pernas e os pés. Sacrificou um bode, um galo e queimou três canas para fabricar a vestimenta. Em seguida, chamou o povo gritando: “Venham ver o pé, o pé do segredo.”Dias depois quando a morte e sua comitiva voltaram ao mercado de Ojaifé foram repelidas por Ameiyegun e sua gente e nunca mais importunaram os habitantes de Ifé.
O candomblé dos Eguns da ilha de Itaparica não se compõe de homens e mulheres do clã dos Ameyegum ou dos clãs aliados. Informa o pesquisador Jean Ziegler, da Universidade de Genebra , que não existe nenhum indício nos arquivos de deportação e registros dos escravos que chegaram à Bahia ou mesmo na memória dos Ojês que permita afirmar que o clã de Paula faça parte da estrutura parental dos Ameyegum. A própria base cênica do candomblé de Egun é rica em subdivisões. Inúmeras vezes quando um doente, um enfermo, um desesperado apresenta-se ao feiticeiro é encaminhado aos Eguns.
Por pedido de um terceiro , o proprietário invoca o Egun e este cura, aconselha, ordena sacrifícios expiatórios ou declara não querer responder acerca do assunto. Em ambos os casos o proprietário do traje recebe um pagamento. Portanto, o pagamento é feito às obrigações e consultas da mesma forma que são pagos os batizados, missas , etc. Tudo dentro de um preço relativo de acordo com o desejo do indivíduo. Cada Egun mantém a hierarquia do terreiro que tem um domínio patriarcal forte que é mantido com muita força e imposição.
Notamos em Amoreiras que a comunicação com os antepassados, com os espíritos e a rígida salvaguarda de sua identidade,dos trabalhos e outros segredos da seita são guardados com preocupações obsedantes. Quando um estranho começa a indagar muito, os membros da comunidade ficam calados lançando olhares aterradores que amedrontam. Tudo é vivido e criado dentro de um clima de alta segurança e ao mesmo tempo de desconfiança em relação a qualquer pessoa que se acerque da comunidade.
No entanto, quando chegamos ao terreiro que eles chamam de Ilha de Agbala, que é composto de pequenas casas e da casa dos Eguns e nos identificamos como jornalistas o velho Antonio perguntou quanto pagaríamos para ver os Babas. Quando dissemos que não tínhamos dinheiro para dar a coisa ficou mais difícil ainda e todos os membros passaram de certa forma as nos hostilizar. Como isto notamos que dentro em breve esta comunidade estará, pelo menos parcialmente, descaracterizada, devido principalmente à invasão turística que está mutilando a vida das pequenas comunidades nas ilhas da Baía de Todos os Santos e no litoral norte da Bahia. Muitas dessas comunidades viviam há pouco tempo em semi-isolamento e agora estão sofrendo o choque da civilização , onde o dinheiro fala mais alto que as crenças e outros valores culturais e religiosos.
O próprio Jean Ziegler escreveu em 1977 que “Ora, em Itaparica, a angústia dos a não se arriscarem. Fazem as perguntas que milhares de outros antes deles já fizeram e cujas respostas já conhecem antecipadamente. Sua liberdade é de tal maneira mutilada que até mesmo a angústia imobiliza-se em palavras imutáveis, A conseqüência é a fossilização da memória coletiva,o nascimento de estruturas minerais que aprisionam e fragmentam o vivo conhecimento dos Eguns. Quanto mais rígidas se mostram as estruturas rituais, tanto menos se desenvolve um saber humano”. Aliado às palavras de Ziegler diria que além de ser um problema insolúvel a violação desta comunidade, alguns membros parecem compreende-la solicitando do estranho visitante alguns cruzeiros para deixar-se fotografar ou fazer qualquer trabalho. Como que querem tirar proveito “enquanto a fonte não seca”.

RESPEITO

Todas as pessoas que estudam o candomblé e são membros da seita têm extremo respeito pelos Eguns de Itaparica e muitos ficaram horrorizados quando procurados para falar sobre o assunto e, principalmente, quando eram informados que dispúnhamos de algumas fotografias dos Eguns e seus Babas. O saber dos Eguns e é um saber revelado, é um saber empírico e completamente guardado dentro de uma visão de medo. Um medo que aterroriza pessoas ligadas ao candomblé. Basta dizer que presenciei o autor dessas fotografias, que é ligado ao candomblé de Olga de Alaketo, sair correndo quando dois Babas resolveram voltar desobedecendo ao Ojê . Imediatamente, o fotógrafo partiu em disparada e tremia de medo. Acredito que aí está um dos sustentáculos deste segredo que vem guardado há centenas de anos e que se espalhou por todos os terreiros do Brasil e da África. Isto porque nem mesmo auxiliares dos Ojês conhecem os mistérios dos Eguns. Eles têm como função essencial manter a ordem da multidão, nas festas e zelar por meio do manejo do Isa ( bastão de cipó) para que seja respeitada a separação dos dois espaços, o dos vivos e dos Eguns. São os Amuisan , que protegem os vivos de todo o contato com os Eguns. Assim, outras figuras integram esta estranha seita que habita um morro isolado na localidade de Amoreiras cuidando da morte, que para eles é a continuação da vida, isto é, o começo de uma nova vida.

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