Ela dava tiros na polícia e costurava com Lampião. Hoje, em Salvador, a viúva de Corisco continua na máquina. Mas seu trabalho é consumido pelas senhoras da sociedade baiana
“Lampião chegou na minha casa e fez uma baderna danada. Na época, eu morava na fazenda Macururé, entre os Municípios de Glória e Paulo Afonso, no interior da Bahia. De repente, Lampião chamou Corisco e, em tom de brincadeira, disse pra ele: Como é: Você não quer desmamar esta menina? Corisco deu uma gargalhada, me pegou no colo, me colocou na sela do seu cavalo e saiu a galope. Depois foram doze anos de luta, correndo ou enfrentando a polícia por toda parte.”
Era 1927, Sérgia da Silva Chagas – que ficaria conhecida pelo apelido de Dadá – era uma garota de 13 anos. Cinquenta anos depois daquele galope que mudou sua vida, Dadá fala de Corisco com ternura – “nos amamos muito” – mantendo a imagem do Capitão Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, muito viva: “Ele era um homem bom. Um homem de palavra, que só falava uma vez e não contava vantagens. Fico triste quando vejo pessoas escreverem coisas que Lampião nunca fez. Os livros que têm saído sobre o cangaço só apresentam vantagens da polícia e coisas terríveis que nunca fizemos. São histórias inventadas para vender livros e filmes. Histórias de misérias, violências e crueldades que não praticamos. Tudo para venderem mais. É verdade que houve muitas mortes, mas a maioria era de traidores que não mereciam continuar vivos. Lampião era um homem bom. Distribuía com os pobres tudo o que tinha.”
Se Lampião distribuía entre os pobres tudo o que tinha, Dadá sustenta com o que ganha na sua velha máquina de costura mais de 10 pessoas – filhas e netos que dependem dela. Ironicamente, Dadá sobrevive hoje com o que aprendeu na caatinga: a costura. Mais uma, ela volta ao passado: “No cangaço, todos costuravam. Os homens cosiam as partes mais duras, os arreios de couro; as mulheres faziam os vestidos, as calças e os embornais. Quando, durante um certo tempo, a gente conseguia se esconder, cada companheiro recebia metros de fazenda, linha, botões e outros materiais. Todo mundo trabalhava e eu me lembro que Lampião gostava muito de costurar.”
Segundo Dadá, foi ela quem introduziu novos desenhos nos enfeites dos chapéus de couro dos cangaceiros e nas jardineiras dos dois lados: “Quando fiz uma jardineira para enfeitar o chapéu de Corisco todos quiseram uma igual. Assim, as mulheres do bando aprenderam a coser novos enfeites e os chapéus ficaram muito mais bonitos”.
Com tristeza na voz, falando lentamente, relembra outros momentos menos felizes: “Todos os quatro filhos que tive com Corisco – Josafá, Maria do Carmo, Maria Celeste e Sílvio Hermano – nasceram na caatinga, mas eu não pude ficar com nenhum deles. A gente sempre tinha que arranjar uma pessoa de confiança para entregar as crianças, senão a polícia ia buscar elas e até podia matar. A gente também não podia carregar um recém-nascido no meio daquela correria toda. Tinha vezes que a gente ficava muito tempo, até seis meses, escondido na fazenda de algum amigo”.
A vida de Dadá mudaria, novamente, numa tarde de verão no início de 1939 na localidade próxima ao município de Miguel Calmon, interior da Bahia.
Lampião fora morto no ano anterior; Corisco, já aleijado, foi denunciado por Velocidade – um ex-companheiro de cangaço. Dadá não esquece: “Corisco nem tinha mais condições de pegar numa arma, tinha montado uma lojinha e vivia honestamente. Veio a denúncia e começaram as perseguições, do mesmo jeito que tinham feito com Lampião. A gente já tinha abandonado o cangaço. Mesmo assim, a gente fugiu – mas foi em vão. Fomos atacados e meu marido morreu varado por vários tiros de metralhadora. Eu também fui baleada. Com a perna estraçalhada, me botaram na carroceria de um caminhão. Nem gosto de falar naquela viagem. Tudo o que eu tinha desapareceu”.
Hoje, com a perna amputada, Dadá foi obrigada a trocar as caatingas e serras do Nordeste por uma modesta casa em Salvador onde mora com seu segundo marido – um velho pintor de paredes aposentado – e passa os dias pedalando numa velha máquina de costura. Com a mesma técnica complicada, e ainda asando lona – material forte também utilizando nos embornais em que os cangaceiros colocavam balas e munições – continua produzindo as mesmas coisas. Só que, agora, seus embornais se transformaram em peças elegantes nas mãos de moças e senhoras da sociedade baiana. Em seus olhos cansados, só existe um sonho – aposentar-se como costureira – enquanto por seus dedos desfila uma verdadeira memória do cangaço.
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