2 de janeiro de 1980
Revista Manchete
Depoimento a Reynivaldo Brito e Tarlis Batista
Foto Manchete
Não nasceu para negócios, mas para o amor e para a vida. No dia 19 de outubro de 1913, na Rua Lopes Quintas, 114, Gávea, o nascimento de Marcus Vinícius da Cruz de Melo Moraes trouxe alegria e preocupação. O pai tinha algum dinheiro, fizera maus negócios na ocasião, com o nascimento do garoto teve de emigrar, procurar vida mais barata. A família deixou a aristocracia da Gávea e foi para o Cocotá, na Ilha do Governador, então muito bucólica, sem ponte e sem praias poluídas.
Ali, o menino Vinícius tomou contato com a natureza, à vida desinibida e livre dos pescadores e dos pobres. Nunca perderia esse chão de infância.
Mas havia que estudar e na ilha não havia bons colégios. Vinícius é matriculado no Santo Inácio, onde reinicia, gradualmente, seu retorno à Zona Sul, mais precisamente, à Gávea, onde, aos 66 anos, morreria.
No colégio dos jesuítas, a fase espiritualista, católica, conservadora, as influências de pias leituras e, mais tarde ainda, na Faculdade de Direito, a influência de Santiago Dantas e Octavio de Faria. Vinícius não chegou nunca a ser um reacionário, mas andou perto.
Como acontecia naquele tempo, falsificava-se facilmente a idade para um menino precoce poder cursar a faculdade. Com 16 anos, já acadêmico de Direito, faz a primeira letra, Loura ou Morena, música de Haroldo Tapajós, gravada em disco Colúmbia pelos Irmãos Tapajós: Paulo e Haroldo, Ano do evento: 1932. Repetiu a dose com os mesmos parceiros, fazendo foxtrotes que tiveram algum sucesso. Mas não dava para ganhar a vida. Com 19 anos, já formado, sonda o mercado de trabalho e verifica que não dá para advogado. Preferia ficar lendo, num bar, tomando um chopinho, e, sobretudo, vendo passar na calçada às moças cheias de graça.
Anos mais tarde, eternizaria esse hábito e essas moças na figura da Garota de Ipanema. Sempre influenciado pelo catolicismo, ele publica seu primeiro poema na revista A Ordem, fundada por Jackson de Figueiredo. A Transfiguração da Montanha foi levada por Octavio de Faria a Alceu Amoroso Lima, que dirigia a revista. Todos pareceram gostar inclusive o próprio Vinícius, que no ano seguinte estréia em livro: Caminho Para a Distância. Seu amigo Octavio de Faria dedica-lhe um ensaio em que estuda a ainda escassa obra de Vinícius ao lado de outro estreante, Augusto Frederico Schmidt. Relembrando essa fase, Vinícius não teve piedade de si mesmo: “Minha poesia inicial tinha de ser esotérica e metafísica. Era muito artificial. Felizmente, minhas curtições de menino criaram em mim um nódulo natural de resistência contra os erros da minha formação, que me permitiram, quando mais adulto, optar por uma simplificação de meu instrumento de trabalho, no sentido de comunicar-me mais e melhor”.
O segundo livro se enquadra dentro desse período sombrio e tem um título óbvio: Forma e Exegese (1935). Apesar de tudo, é um poeta desempregado, até que consegue o seu primeiro emprego sério: o de censor de filmes, de 1936 a 1938, ocupação pouco brilhante e democrática da qual logo procurou se livrar. Arranjou uma bolsa-de-estudo. Aos 24 anos, o primeiro casamento, por procuração. A noiva, Tati, morava em Londres. Foi o início da outra e da mais comprida obra do poeta: o amor.
O casamento durou bastante, foi o mais longo. Vindo do exterior, o casal foi morar no Leblon, numa casinha da Rua General São Martin. Ali se reunia uma turma de amigos, mas a boca-livre era moderada pois o dono da casa continuava sem emprego. Aí apareceu a opção do Itamarati. Naquele tempo não existia o severo vestibular do Instituto Rio Branco. Mesmo assim, havia um concurso e Vinícius passou uns tempos estudando seriamente, só conseguiu passar na segunda tentativa. Deve a sua carreira diplomática à influência de sua mulher Tati e de seus amigos diplomatas Jaime Azevedo Rodrigues e Lauro Escorel. Em 1943 recebe o primeiro posto no exterior: Los Angeles. Serviria na carreira diplomática durante 25 anos, mas nunca levou a sério a função.
Mas importante do que tudo foi à viagem que fez pelo interior do Brasil em companhia do polonês Waldo Frank. A intimidade com o Brasil de verdade provocou a virada total em sua vida: na poesia, na ideologia, na maneira de viver e, até, no modo de amar. Libertou-se gradativamente das amarras e entrou de cabeça na vida. Para Viver.
Daí em diante, a vida de Vinícius se confunde com a do tempo em que viveu, nos setores da música popular, do espetáculo, da badalação e até mesmo da política.
Duas importantes vertentes se formam na obra viniciana, dividida esquematicamente em dois segmentos básicos: a poesia em termos eruditos ou em letras de canções populares; e o roteiro infinito de suas andanças amorosas, sintetizadas em nove casamentos e diluídos em diversos casos, sobretudo, na imagem do grande amante que, de uma forma ou outra, influencia homens e mulheres de duas gerações.
Como poeta, ele conseguiu ser maravilhosamente fiel às mulheres com as quais se casou e amou enquanto o amor foi amor
A série de casamentos iniciada com Tati prolongou-se, em 1952, com Regina. Seguiram-se: Lila Bôscoli, Lúcia Proença, Nelita Abreu Rocha, Cristina Gurjão, a baiana Gesse, a argentina Martinha e Gilda, a última. Mais do que um rosário de nomes, foi uma vivência de amor que ele esboçara, pela primeira vez em letra de forma, numa edição de MANCHETE, em 1955, na seção intitulada A poesia é Necessária. Ilustrado por Carlos Thiré, aparecia Receita de Mulher, com a indicação: “Poema inédito, enviado de Paris especialmente para esta página.” O poema tornou-se famoso, principalmente pelo seu citado começo: “As muitas feias que me perdoem/ mas beleza é fundamental.”
A ruptura de Vinícius com o mundo acertado e frio é total. Pouco a pouco, ele abandona uma série de convenções, a gravata, o paletó os cabelos corretamente cortados, engorda e emagrece conforme a vida vai levando, curte corajosamente suas fossas, atola-se no amor (“O que mais gosto é do agarramento”), participa de movimento bossa-nova, onde logo conquista o lugar que ninguém lhe tira: o de melhor letrista. Ao mesmo tempo que muda de mulher, muda de parceiros e ele próprio admite que há alguma analogia na parceria de uma vida e na parceria de uma canção: o mesmo ciúme, o mesmo gostar muito e, finalmente, a exaustão, o não ter mais nada a dizer.
Antônio Carlos Jobim, Carlos Lira, Baden Powell, Toquinho – ele influencia diretamente todos demais letristas e se torna o Poetinha das rodas boêmias, o adulto maldito da sociedade bem-comportada.
Em 1968, já famoso internacionalmente através de seu filme Orfeu do Carnaval e de algumas letras que percorriam o mundo, Vinícius é aposentado a força de suas funções de diplomata – que, aliás, ele próprio era o primeiro a desprezar. Dá expediente, então de boêmio, em regime full time. Deixa o Rio por uns tempos, considerando a cidade em que nascera muito cruel e agressiva. Vive uns tempos na Bahia, jura que nunca mais sairá de lá, “a Bahia está mais perto da verdade”, mas o sonho dura o que duraram suas paixões e ele volta ao mundo e ao Rio. Só conseguiu ser fiel ao grande amor, que para ele não estava numa mulher ou numa situação, mas num clima interior.
“Vinícius havia chegado a Paris, em 1956” – conta Cristina Gurjão – “e o Ronaldo Bôscoli me apresenta a ele. Na época Vinícius estava casado com Lila Bôscoli. Eu tinha 16 anos e fiquei deslumbrada com a possibilidade de frequentar a casa dele. Acabei me tornando amiga do casal. Mas nada havia entre nós. Depois ele se separou de Lila e se casou com Lucinha Proença. Eu só me casei com ele em 1968. Foi um casamento que durou quase três anos e nesse período tivemos uma filha, Maria, hoje com 10 anos. Vinícius foi um dos seres humanos mais perfeitos que conheci. Foi, inclusive, um bom pai. Todas as vezes que vinha ao Rio encontrava tempo de se dedicar a Maria. A influência dele está se refletindo agora em nossa filha, cujo temperamento é bastante parecido com o de Vinícius”.
Além de distribuir amor, Vinícius distribuiu talento e alegria com seus numerosos parceiros e amigos da música, do teatro e da vida
“Meu primeiro encontro com Vinícius – diz a baiana Gesse – foi durante a filmagem de Sol Sobre a Lama, dirigido por Alex Vianny e cuja trilha sonora era de Pixinguinha e dele. Foi um simples conhecimento, não um contato estreito. Em 1969, quando Vinícius colocou as mãos sobre o cinema da calçada da fama, em Ipanema, segui com Maria Bethânia e alguns outros amigos baianos para uma boate. Vinícius foi conversando com todos, de repente estávamos ele e eu sozinhos, fomos para uma boate onde Luizinho Eça tocava ao piano. Vinícius começou a cantar canções para mim. E assim tudo começou. No dia seguinte voltei para a Bahia e pouco tempo depois recebi um telegrama pedindo que eu viesse ao Rio. Arrumei as malas e vim ao seu encontro, seguindo com ele para o Uruguai. Ele iria realizar uma temporada por lá. E lá nos casamos. Foi, aliás, o nosso primeiro casamento. O segundo aconteceu em 1973, no candomblé. Nos sete anos que durou nossa ligação, ele foi muito feliz. Vinícius me cercava de muitas atenções e carinho. Sei que muitas mulheres povoaram a sua vida durante o nosso casamento. Ele viajava, em temporadas pelo interior, eu telefonava para o quarto dele, uma mulher atendia, dizia que era a camareira, a arrumadeira, mas eu sabia que era outra amada. Não me aborrecia. Afinal, o seu amor era eterno enquanto durava. O nosso, enquanto durou, foi eterno. Recebia flores de todos os cantos do mundo, fui carregada no colo e tive todas as minhas vontades realizadas pelo homem maravilhoso que um dia me amou”.
Vinícius não fazia por menos. A um repórter confessou um dia: “O que eu gostaria mesmo é de reunir a mulherada toda, desde Tati, todas as minhas namoradas, mulheres, casos, flertes, encher a casa com elas, fazer aquele porão de Fellini em Oito e Meio, a promiscuidade total, o amor total”.
Para um homem assim, para um poeta simples e consumado, a vida não podia estar dissociada de sua obra. Mais do que escrever poesia, ele vivia a própria poesia em sua vida, em sua paixão e em sua glória.
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