Objetivo


sexta-feira, 22 de junho de 2012

COMPORTAMENTO - DA ILUSÃO DO CALOURO À REALIDADE DO DOUTOR

COMPORTAMENTO
Jornal A Tarde , segunda-feira , 21 de dezembro de 1970.
Texto Reynivaldo Brito
Ilustrações Edu
A euforia domina centenas de rapazes e moças que foram aprovados no vestibular. Rapazes carecas, sujos e embriagados. Um manto de ilusão cobre-lhes as cabeças. Mas, depois de dois ou três meses , já conhecem um pedacinho da realidade...

“Felicidade passei no vestibular...”, O verso de Martinho da Vila traz um momento de ilusões envolve milhares de jovens que por esse Brasil afora. As dificuldades iniciais, como o pagamento da matrícula – quando a faculdade é particular – e os livros caros começam a lançar por terra as perspectivas de um mundo novo e maravilhoso. A realidade é outra. As decepções são muitas. Elas se apresentam desde a primeira aula, quando um professor velho e alquebrado começa a vomitar um palavreado chato e maçudo. O estudante recorda as suas antigas aulas no colégio, quando os professores falavam de tudo, menos do assunto que deveria ser estudado.
Vem o currículo universitário. Outra decepção. Esperava encontrar assuntos palpitantes e depara-se com algumas matérias distanciadas da realidade profissional. Noites são perdidas cotidianamente para estudar assuntos que nunca irá utilizar. Quatro ou seis anos passaram. “E depois de tantos anos / Só decepções, desenganos”... Olha para trás e vê que pouca coisa aprendeu. A perspectiva de emprego começa a ser uma preocupação diária. A concorrência é desleal para o novo doutor. E agora José?

                                                                CALOUROS

José está rodeado de mocinhas casamenteiras primas e amigas que desejam “laçar” o novo doutor. Beijinhos e risadinhas faceiras fazem parte deste teatro do absurdo. Depois, elas se vão e o nosso José vai sozinho e desconsolado para uma cidadezinha do interior. Às vezes uma coleguinha de infortúnio conseguiu “laça-lo” e vai com a pasta pura. Mas com um novo estado civil... casado!

Curso colegial foi concluído. Vai à Copesa para providenciar sua inscrição no vestibular. Fica em dúvida na hora da opção que carreira ou carreiras pretende seguir. Mas, depois de algum tempo, resolve que vai ser bacharel em qualquer coisa.
Depois da aprovação no vestibular, vem aquela euforia que todos nós estamos acostumados a presenciar. São centenas de rapazes e moças que desfilam em frente às faculdades ( antes, pelo centro da Cidade) sujos de roxo-terra e outras tintas, sem camisas e vestidos em fantasias extravagantes, que os veteranos obrigam-lhes a ostentar. Discursos sem razão de ser são proferidos pelos calouros. Matriculou-se no primeiro ano de Faculdade. Os veteranos começam a chama-lo de burro, que é um dos sinônimos para o novo universitário. As decepções começam a surgir. Julgava ser recebido com carinho por seus colegas. Vai às primeiras aulas e os professores lhe apresentam cada um em particular, uma relação quilométrica de livros. Julga que precisa comprar todos eles e fica desnorteado. Mas a maioria dos mestres faz isto para impressionar. Poucos daqueles livros relacionados serão realmente utilizados por José.
E o sambista carioca Martinho da Vila continua “Livros tão caros, / tantas taxas pra pagar./ Meu dinheiro muito raro / Alguém teve que me emprestar”. Sim teve que emprestar quando o novo universitário tem um parente que mora na Capital. Está morando numa pensão que já apelidou de “Balança, mas não cai”, no Largo da Palma. Os ratos disputam com ele e mais de uma dezena de colegas de infortúnio, os poucos metros de pisos esburacados. As paredes de seu quarto já estão lotadas de cartazes de mulheres nuas. Flâmulas, recortes e outros objetos fazem parte deste mundo de estudante universitário.

                                                       DIFICULDADES


É hora de “paletar”. Aperta a pastinha que ganhou de presente e começa sua maratona. Vai de casa em casa visitando políticos em busca de uma colocação. São dois, três ou mais meses, que passa numa penúria desgraçada, até que recebe um convite e se “enterra” numa cidadezinha do interior... Sem água, sem luz , sem nada...

O dinheiro para o transporte até a escola e o restaurante universitário – quando já está no segundo ano de Faculdade – falta de vez em quando. Um empréstimo aqui e outro ali, assim ele passa de quatro a seis anos.
Festinhas que são realizadas nas faculdades, José não perde uma só. É uma nova faceta em sua vida. Lá vai encontrar meninas universitárias e outras mocinhas casamenteiras que foram trazidas por algum universitário. As suas colegas do restaurante geralmente são de classe média e passam pelas mesmas dificuldades. Estão eufóricas e esqueceram-se dos namorados que deixaram no interior. “É um tabaréu”, dizem. Querem apanhar a todo custo o novo universitário. Um bate-papo enquanto dançam e está acertado o namoro de José e Maria, às vezes namoram-se durante todo o período universitário e, quando chega o dia da formatura, está na hora de realizar o casamento. Nova ilusão. Muitas vezes casaram-se sem condição econômica. Mas já se acostumaram de certa forma, às necessidades, porque curtiram durante os anos de Faculdade quase os mesmos problemas que terão que enfrentar com o novo estado civil.
José está vestido num smoking alugado. Vai para a festa de formatura. É o seu grande dia. O anel brilha em seu dedo anular. As meninas estão entusiasmadas para descobrir se ele é um dos recém-formados. Uma auréola de contentamento envolve José. Quatro horas de músicas e meninas de máxis que desfilam para ele soltando risadinhas amarelas e traiçoeiras. Mas tudo termina e a festa de formatura não foge à regra.
“E agora, José/ A festa acabou, / o povo sumiu/ a noite esfriou.”, os famosos versos.
de Carlos Drummond de Andrade nos leva a pensar e parodiar o grande poeta mineiro.
“E agora, José?”Está sem mulheres/ Está sem discurso? Está sem carinho.

                                              SONHOS DO DOUTORZINHO


As portas da escola estão fechadas. Recebeu na hora da colação de grau um canudo de papel sem significação. Nem ao menos o verdadeiro diploma lhe foi entregue. Mas, o anel reluz em seu anular. Olha para a frente e não enxerga muitas perspectivas...

“Mas felizmente consegui me formar”... Este verso da música “O pequeno burguês”, de Martinho da Vila traduz uma realidade dura para o doutorzinho. E para completar o quadro lembremos-nos da poesia de Drummond – “José”- “E agora José? / A festa acabou,/a luz apagou,/o povo sumiu/ a noite esfriou/ e agora, José?...”
Um sentimento de tristeza começa a tomar conta do novo doutor. A alegria da família que veio do interior, não consegue apagar de seu pensamento aquela frase célebre. Que fazer? Os sonhos evaporaram. Os colegas ganharam novos caminhos. Se foi um estudante de Direito, recorda-se das ilusões, quando no primeiro ano de faculdade sonhava ser um Senador da República. No segundo, deputado federal. No terceiro, deputado estadual. No quarto, prefeito do interior. No quinto e último ano de escola, promotor ou juiz e finalmente, agora que se formou vai se enterrar numa cidadezinha com menos de dez mil habitantes, para advogar.
O ex-estudante de Medicina que em seu primeiro ano universitário pensava que logo iria ser diretor de um grande hospital também, vai enfrentar problemas. Vai para um município onde não existe luz, água encanada e televisão. A maioria dos habitantes não têm condições financeiras de lhe pagar uma simples consulta e muito menos de comprar os remédios que indicou. O curandeiro da cidade é um forte concorrente e muitas vezes o novo doutor pensa em fazer as malas e procurar outra cidade. Mas também termina se fixando onde está.
O ex-estudante de engenharia que passou meses e meses a fio perdendo noite com cálculos imensos, fica a ver navios... Um emprego qualquer seria a primeira solução para o início de sua carreira. O mercado de trabalho também é restrito para este campo,principalmente, para quem não tem nome e “tutu” para fundar uma firma construtora. Muitos deles vão trabalhar como assistentes de uma obra planejada e executada por profissional de renome.

                                                       MEIO DA RUA

A faculdade fechou-lhe as portas. Mas José ganhou uma pastinha de presente de formatura. Aperta a pasta debaixo do braço e ganha às ruas em busca de uma colocação. Os amigos e os deputados “enrolões” começam a ser visitados por ele. Uma promessa aqui e outra ali e assim já se passaram três ou quatro meses. Quando encontra um colega que lhe pergunta: “Como é José?, já está empregado?” Uma frieza terrível corre-lhe o corpo, desde as pontas dos dedos dos pés até o último fio do cabelo. A palavra quase não saía de sua garganta seca de tristeza. Faz uma enorme força e responde: Ainda não, e você?”Uma resposta vem de logo: “Claro rapaz”!”. O deputado fulano de tal falou com o Secretário... “e arranjei um contrato”. Mas o nosso herói não desanima. Passa outros meses na penúria até que arranja uma colocação no interior de um município. Lá ele é chamado de doutor pelos habitantes da cidade. Mas, é um homem qualquer na multidão, sem sonhos, sem meninas com risadinhas traiçoeiras. Diz Drummond : “sozinho no escuro / qual bicho-do-mato / sem teogonia, / sem parede nua / para se encostar / sem cavalo preto / que fuja a galope, / você marcha, José! / José, para onde?

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